© DA.
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Terça-feira,
1 de Junho de 2021
Julgo ter adormecido ontem enquanto V. dizia, quê?, de algo ou alguém.
Aqui na hospedaria, onde Conrad Mehler teve quarto algumas vezes.
Julgo também ser já Junho aí onde morais & demorais.
Aqui já não conto meses, anos sequer, cedo quartos a quem precisar.
Faço café aqui, poucas vezes vou ao bar-armazém, para quê?
Da sede cantonal trazem-me livros no espúrio Verão destas bandas.
Li as peças de C. Mehler, são alegorias de um tempo nunca meu.
São falas cruas entre personagens esvaziadas de toda a fé.
Esvaziadas como vazios os quartos desta hospedaria.
Há porém lição nas cenas, qualquer coisa ubíqua da condição humana.
A radiofonia avariou-se, ainda não pedi ajuda técnica a Gustavo.
Gustavo é o hábil faz-tudo deste cu-sem-judas onde suportamos a vida.
Sem ele, isto seria um pátio de primatas, talvez antropófagos até.
Já lhe contei da autobiografia de Mehler, Gustavo lembra-se dele.
Gustavo lembra-se de lhe ter reparado o relógio-de-pulso.
Reparou o relógio de alguém cuja escrita é intemporal.
Tenho caldo a ferver no fogão-a-lenha, perfumada é a casa.
Tenho também a edição-pastoral da Bíblia feita pelos Paulistas.
Mesmo congelado à face, o rio dá peixe, come-se logo ou fuma-se.
É grande maravilha fazerem os comboios andar como toupeiras.
E também haver actores capazes de decorar & declinar tantas palavras alheias.
Palavras urdidas em quartos como este, num sítio intemporal.
Mesmo ao frio mais agreste, a reflorestação tem sido visível & franca.
Ainda há homens capazes de coisas bem feitas, há boas mãos.
Os novos que ainda há, esses também envelhecem, mas têm tempo.
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Casa por dentro clara, com plantas bem tratadas à luz aberta.
Portadas em vidro de pé-alto franqueiam o ar do jardim-pátio.
À mão, nespereira & roseira, horta geométrica, água do furo.
Estas pessoas sabem o que quiseram, o que têm, não anseiam.
A velha gosta de fazer a sesta na espreguiçadeira sob a árvore.
Aí sonha vidas alternativas – mas também estas pretéritas como a sua.
Esmigalhada a penumbra por diamantes de sol, é mini-selva.
A neta da velha brincou ali muito, mas tem agora dezasseis anos.
Brincar tornou-se outro verbo, que a menina conjuga em novidade.
O pai & a mãe desejaram-na, têm-na, vão perdendo-a como é de lei.
A dada altura, prioridades deixam de sê-lo, outras imperam.
A ciência é ir amestrando cada contrariedade, não é fácil prática.
Resiste-se ao que se reconhece como contrário, o irreconhecido escapa.
O autismo é mais regra do que excepção, a História não o desmente.
Que importa? Três mulheres & um homem em casa clara com plantas.
Diversas prioridades, chega a ser monótono conferir as repetições.
Não há que ansiar, sobretudo não ansiar, deixar pretérito o desejo.
Mal não faz, isto de poetar quanticamente, barro atirado a parede nenhuma.
Sonhos alternativos & universo doméstico, tempo-espaço, relógio sem ponteiros.
E o sol em crisol na ramalhuda nespereira – e chuva no nabal.
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Conheci um homem chamado A. que fazia da sobranceria dinheirosa uma profissão-de-(má-)fé. Lidei pouco tempo na proximidade dele. Foi incorrecto para comigo uma vez, mas não três: à tentativa de segunda, ladrei-lhe a milímetros da cara. O filho não teve de despedir-me. Demiti-me depois de colher o dinheiro já trabalhado. Espero que A. tenha, se for vivo ainda, uma velhice agreste. É o que ele deve à vida. Ça y est.
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Normalização do grotesco.
Banalização do mal.
Obrigação do anormal.
Apologia do simiesco.
Tudo sim, sem talvez.
Século XXI, milénio III.
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O sono das coisas adormece as janelas
Longes cor-de-tijolo ruborizam o ocaso
Um idioma íntimo intima a resistir
Assenta-te em papel mas chama-lhe pedra.
É belo saber que existe beleza
É crucial perceber cada hedionda coisa
Ao corpo como praia aportam destroços
& odes, elegias, amendoins & tremoços.
Cada pessoa inaugura em si o mundo
Faz a mente de minotauro pessoal & portátil
Fecha-se os olhos, é-se inundado de mar
Tanta coisa c’a carreira, amanhãs da reforma.
Indefessas são as máquinas-de-desinformação
Ataranta-se o rebanho com um deus fedegoso
Tradições de imitação urram regulamento-perigo-danger.
Eutanásia interdita, olha-nascesses-com-bracinhos.
Energúmenos deformam a calçada moral
Rectidão é anacronismo avoengo
Qualquer merda é cantor, qualquer merda escritor
Parecer é que é ser, não é preciso estudar.
As gajitas do reiki, que já ninguém fode,
Sonham com nepais d’artesanato & viver porque-sim
Passeiam nos shoppings anorexias vegânicas
E menstruam a verde pelo figurino-de-Paris.
É belo todavia catar beleza ao dia
À noite vacamente pastamos a própria solidão
Em pequeno lá fiz a primeira poesia
Bateram palminhas, fiz um figurão.
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