30/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 505 a 509

© DA.



505

Quarta-feira,
23 de Junho de 2021

Autoarmadilha-te nostalgias & anemias mas depois não te estremeças
de vir chorranhobabar-te no meu ombro osteoporótico.
Deves-me mas é duas de vinte, não te esqueças.
Sim, quarentolas, meu cão-danado, pelado & neurótico!

Apocalips’eclips’ei-me há muito de poemazecos,
só escrevo agora nos livros-de-reclamações.
Uma pessoa não chega a Pessoa, essa é que é Eça, ó Camões!
Bebo aguardente sozinho, não m’encarreiro com ba(r)damecos.

506

    Profusão encarnada de grenás rubicundos. Veludos fortes, damasco nada áspero, antes macio como vulva amada, outrora. Todos os móveis belamente, escrupulosamente envernizados, como aliás merecem tão formosas peças. E no entanto mora aqui gente pouco-nada-zero feliz. Palácios & barracas parecem capazes do mesmo, afinal.

507

    No próximo dia 10 de Abril de 1962 (terça-feira), o senhor (ainda não) meu Pai completa 47 anos. No mesmo dia o melhor JazzMan do Mundo & de Sempre, senhor Bill Evans, grava nos Plaza Sound Studios, em NYC, USA, In Your Sweet Way. É engraçado ver o meu Pai dez anos mais novo do que eu, A Seu Doce Modo.

508

    Fui ao enterro de Jules, pai da Marie du Port, por cá conhecida como A Sonsa. Convidou-me um belga chamado Jorge Sim-&-Não. No préstito, L. Carrola contou-me da viagem que fez à Tunísia. Diz-me que dormiu numa tenda (mas de luxo, quase como as do Qadhdhāfī, o Líbio) em pleno deserto. No mesmo saimento, o sargento Pias disse-me que a maior mágoa que tinha na vida era a de Béla Kiss, esse cabrão sanguinário, lhe ter escapado por um triz. (E triz vem-nos & chega-nos da Língua Grega, significando cabelo. E quando eu expliquei esta etimologia ao sargento Pias, ele rosnou-me logo, afastando-se-me com nojo, “Bubedolas-poetôlo-do-catano!”)
    Enterrado “o pobre Jules”, como o designou o “enorme Charles com a sua perna-de-pau” (disse-me o Sim-&-Não, assim textualmente, a páginas 6 da tradução portuguesa feita por Mascarenhas Barreto para a Colecção Miniatura, Livros do Brasil, Lx., s/d), fomos escorripichar vermutes no Café de la Marine, claro. Vermutei-me então tanto, que às tantas, mesmo de olhos cerrados, já olhava os delírios do campo. Ninguém me tratou mal, nem eu fiquei a dever um pataco, paguei a rodada da minha vez e tudo – que, no caso dos bebedores, costuma ser nada.

509

    Já não vive Eduardo Ávila Fraga Rarobusto. Faz cá tanta falta quanto a fome. Era um falso bonacheirão. Ao vocábulo bonacheirão é instintivo associar a imagem do gordo-bondoso. Ele de facto era-o, à excepção de bondoso. A gordura dele ressudava miméticas de circum-intelectual. Ele de facto era-o, à excepção de nada.
    Também já não respira Manuel Linhaça Hierro Malva, que parecia menos do que era. E o que era, era grande, grande pintor. Conseguiu poiso onde dormir, comer & trabalhar. Vendeu pouquíssimo do muito que criou. Não tinha alma para o negócio, só o segredo do ofício. Apoiou-o a Família Janela Arriaga (patrono-mor, o velho Aurélio Victor J.A.; conivente, a senhora deste, Celestina Maria; idem, o filho Victor Aurélio; idem, a filha Maria Celestina). Pois ainda bem.
    Mais mortos:
    António Colombo Iorque Guerreiro, falcão de falcatruas chorudas, nem dois anos chegou a cumprir na penitenciária, mas a chelpa gamada não o safou: à saída de uma opípara jantarada de casino-hotel, estirou-o sem retorno um fulminante chilique cardíaco;
    Reinaldo da Glória Canavarro Videira, topógrafo de leitos-marinhos, cônsul-honorário da Costa do Marfim, amigo dos judeus diamantinófilos de Amesterdão, informador da Mossad (que é como em ídiche se diz & escreve & pratica Abwehr ou Schutzstaffel, é à escolha do freguês), viúvo consecutivo de matronas invariavelmente milionárias & invariavelmente envenenadas a conta-gotas, finalmente viúvo & órfão de si mesmo às 16h23m da tarde de domingo, 7 de Agosto de 1983, dia-santo escolhido por Cesaltino Moreno, seu amásio & gigolô dominicano, para o escortaçar à catanada em plena Plaza Mayor, Madrid.
    Sei bem que não parece cá muito bem apodar tão assanhadamente os mortos. Não quero saber. Sempre tive por norma certa lapidar franqueza & certo assassino desassombro quanto a filhos-bastardos-de-putas-confirmadas. Do meu rol hodierno, só escapa, pela porta boa, o pintor Hierro Malva. Não faz mal. Não se pode estar sempre a dizer bem, sempre a ser entusiasta & encomiasta. Os animais não criam lixeiras. As lixeiras são espelhos de uma certa espécie. Maiormente, o símio-humano é coteto & é faceto. Não minto, quanto a isto. Não vou ser ditirâmbico, por assim dizer, para com quem não merece, em vida, respeito na morte. Sei bem que não ganho codório, ou migalha sequer, com tal armadura. Também nunca me vistes nem ouvistes cantando o Horst-Wessel-Lied, pois não? Pois não.

23/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 502 a 504


502

Terça-feira,
22 de Junho de 2021

    Os meus primeiros fregueses do dia (entre as 5h30m & as seis) constituíram-me fortuna: quatro corvos, nada menos, vieram ao meu pão. Por estar duro, amorteci-o em água-corrente (digo: o pão), só depois o lançando (aliás olimpicamente) ao telhado das garagens que raiam o bosquete. Belíssimas, poderosíssimas, pristiníssimas aves. Não se demoram. São escritoras rápidas do verso de si mesmas. No caso, e por assim dizer, o meu pão serve-lhes de papel.

503

Búteo Zacarias & Tarântula Maria, seres livres, agentes de suas vidas.
Patrulham a existência com inata sapiência.
Congénito instinto os obriga a durar por inteiro.
Não os aflige a pergunta inquietante, a desordem sim.

Na fábrica de sabões, o operariado cumpre o circuito.
A estrutura produtiva precisa do tempo humano.
Em outra unidade, fabrica-se o óleo vegetal para fritura.
A barra sólida chama-se margarina, a manteiga dos pobres.

Campo aberto, casario de tábua, valas para rega.
Passa-se de rapaz a velho num ápice distraído.
Alfaias vibram em prolongamento do gesto humano.
Nenhum deus atrapalha esta criação.

Bibes infantes: rosa, azul, verde, tangerina.
Batas operárias: branco, castanho, cinzento, batata.
Em o deserto, olhar imerso em firmamento.
Dorme-se na tenda, pão & água guardados.

Hidrogénio, hélio, armas feitas sol.
Luz & água elevam a planta, palpitam-na.
No cerne do visível, a poética da cegueira.
Patinhamos na lama, somos os do berlinde cósmico.

Plantar, colher, fabricar, resistir.
Também afinal inatos, nós, em circuito.
Criámos porém explicações divisoras.
O búteo é porém búteo; tarântula, a tarântula.

O senhor Ptolomeu calcula anéis celestes.
O senhor Copérnico jogou berlindes orbitais.
O senhor Kepler disse central a solar fogueira.
O senhor Galileu arrasou a padralhada.

Pondere-se com gravidade o senhor Newton,
A maçã, a água, a luz mesma – atraem-se.
Einstein trabalha em patentes; Kafka, em seguros;
Paredes, em radiografias; Wenceslau, em barcos.

Dos criadores aos destruidores, búteo & tarântula.
Considere-se o carniceiros de porcos, R.W. Pickton.
Tornou anedóticos a polícia & o tribunal canadianos.
Foi o precito predador do Low Track vancouveriano.

Tarântula & búteo alimentam-se sem crime.
E nós? Estudamos Marte & criamos o Low Track.
A tentação solipsista é acutilante.
Não só o sabão – também a chacina é indústria.

Inventou-se o Diabo para haver Bod’Expiatório.
Daí que se Lhe atribua caprinas patas.
E depois deixamos em paz a vizinhança.
E o Espaço-Tempo desdenha-nos, com razão.

Desdenha-nos & desenha-nos – somos os bonecos dEle.
O matemático tenta ler o máximo nos elementos.
O músico dá-no-los a escutar.
O criminoso gatafunha, não sabe ler nem escutar.

Como em um sono protegido, zona de segurança.
Clarões valiosos iluminam episódios.
Esses episódios estavam suspensos no a-Tempo.
Digo: suspensos como os famosos jardins d’onde-não-sei.

O particular integra o universal.
A solidão também, dicunt mihi.
Alegres passeatas com pausas para refresco.
Gente em deliciado pânico religioso.

Tive & mantive um caderno de capas azuis.
Registei sentidos alheios & cintilantes.
Não tive pressa nem retardei prática.
Recordo as segundas-feiras como mais produtivas.

Frequentei a rua onde era a sapataria.
Tinha um toldo amarelo, letras roxas.
O dono era velhíssimo, respirava outro tipo de ar.
A paragem-bus era nessa rua, à saída do colégio.

É permitido dizer nomes?
Se for, lembro-me da Natália & do Fausto.
Convidaram-me para o casamento.
Eu era virgem, ainda o fui mais dois anos.

Não o impressiona a quantidade de medíocres?
Vejo que sim. A mim também, muito.
Tenho alturas em que me incomoda menos.
Não são eles a incomodar-me, é o eu ligar a isso.

Estou em que os pequenos-nadas contam mais.
Quero dizer: mais do que as grandes sonhadorias.
Sabe, os gestos ruidosos, o dar-espectáculo.
A mão-direita publicar a esmola que a esquerda deu.

Vou pelos livros deveras bem escritos.
Eles roubam pão à morte, aborrecem-na.
O Nemésio montado a cavalo pelo Tovim.
O Eça recebendo no consulado o jovem Nobre.

Preocupa-me a impotência.
Entenda-me, p.f.: não a sexual.
Essa ainda é o menos, na minha idade.
Digo a outra, aquela perante o mal-social.

Procedo a este inquérito para não ser eu.
Não ser eu a responder, a expor-me.
Exemplo: Que acho eu da pena-capital?
Exemplo: Por que me dana a ignomínia?

Num dia bom, encho o bandulho & durmo.
Bacalhau com batatas, sesta sem despertador.
Já não sou muito de ir a bailes ou a feiras.
Faço as compras sem alarde nem pompa.

A filha do senhor Botelho fez-me um gorro azul.
Azul, de lã forte, um belo gorro para Dezembro.
A filha do senhor Antunes fez-me canja & pudim.
Eu na altura da filha do senhor Antunes não tinha cozinha.

Como quem faz o rol de mercearias a aviar.
Quem diz mercearias, diz recados, documentos a tratar.
Isso – e voltas a dar, telefonemas a fazer.
Isso – e não depositar muita fé seja no que(m) for.

Gosto de casais casados contando viagens agora antigas.
Não me aborrecem que mostrem mil fotografias.
Os casais infelizes têm poucas fotografias.
Os casais felizes nunca têm menos de mil.

A filha de Alice & Américo tornou-se muito requisitada.
Não era desengraçada – e formou-se médica-pediatra.
Acontece que ela preferia raparigas, a verdade é essa.
Na altura era vergonha, hoje é orgulho, parece mentira.

Coimbra? Foderam a indústria, despromoveram tudo.
Isto sobrevive de hospitais, universidade & serviços.
O comércio é só nos hipergalinheiros.
Algarvizaram o resto, é só souvenirs de cortiça.

Se estou a ser mauzinho, má-língua, ressabiado?
E depois se estiver? A cagar, nunca errei o chão.
“Cala-te aí, boca aberta / Que não sabes o que dizes.
Tens um buraco na cara / Onde cagam as perdizes.”

Trinchar o peru. Pintar a garagem.
Regar o canteiro. Comprar cortinados.
Pesquisar árvore-genealógica familiar. Dormir.
Acordar. Não esperar, ir andando.

Imagens ou instantes mais fulminantes?
Ora deixe cá olear a lingueta ao bestunto.
Aos cinco anos, levou-me ao circo, o Raul.
Quando me tiraram o sinal perigoso da nalga esquerda.

Olhe, mais esta: a Ivone a mostrar-nos as mamas.
Foi na primária, entre a oliveira & a cantina.
Demos cinco tostões cada um, ficar a dever não dava.
Ela ganhou meia-coroa: éramos o Crispim, o Mané, eu, o Beto & o Chicha.

Vejo documentários sobre crimes escabrosos.
Não gosto dos que ficaram por resolver.
Vejo menos desses, frustram-me, amargam-me a boca.
Sim, sou a favor da pena-de-morte, sim.

Acho natural que os anos insulem mais as pessoas.
Não digo todas, há quem rambóie até ao mármore.
Digo pessoas como eu, com quintal, um cão, livros.
E com idade q.b. para saber o que(m) não quer.

Soube do caso do violador em Lisboa?
Vá lá que apanharam o gajo.
Espero que lhe façam a folha na prisão.
Um pau de vassoura pelo cu acima.

Tenho corrido o nosso País mais ou menos.
Sítios que não conheço? Alguns, sim.
Pinhel. Beja. Chaves. Montijo.
A Madeira. E os Açores.

Figuras históricas a valer?
O Churchill. O D. Quixote.
A Madame Curie. O Adamastor.
O Salazar. E o Pinóquio.

Um vizinho maluco.
Duas patas-chocas.
Três como nos film’spornos.
Quatro para uma suecada.

Ir com o Jorge jantar na Tenente Valadim.
Ir com o Rui aos sapatos.
Ir com o Fernando libertar uma gata.
Ir com o Zé tocar & cantar.

Sei de pessoas admiráveis.
São-no deveras – mas ninguém as admira.
Em contrapartida, venera-se o idiota.
O patet’alegre. O lambe-cus.

Recordo-me daquele que morreu no Açude.
Estava à caça (proibida) da lampreia.
Também fui amigo do pai do rapaz da ponte.
Digo: do rapaz que morreu na construção da ponte.

Na extrema-poente da Travessa da Rua Pêro Vaz de Caminha.
Árvore maravilhosa, ali ao dispor das aves.
Ao dispor das aves e ao meu, que sou silv’ornitófilo.
Passo lá sempre que posso, mas é que posso pouco.

Sítios onde tive momentos de alegria?
Em Penalva do Castelo, vi o meu Professor Elias.
Na Quinta do Couto, três dias com o meu Pai.
Na Figueira da Foz, cada Julho, com a minha Mãe.

Sítios felizes, tenho mais alguns que são dizíveis.
No Hotel Avenida, noite de quarta-feira, 11 de Maio de 1994.
Em Casa, noite de quarta-feira, 30 de Setembro de 1981.
Idem, manhã de sábado, 5 de Novembro de 1977.

E de tristeza?
Nunca senti tal coisa.
Nunca mesmo?
Nunca mesmo: sou um venerável patet’alegre.

Todos (mas todos) os outros são de segundo para baixo.
Refere-se a quê? A jogadores da bola? A destinos turísticos?
A versos. O verso de Pessoa.
“Minha pátria é a língua portuguesa.”

Tempo estragado, dissipado, mal-empregue & mal-entregue.
É-me difícil, a mim-agnóstico, imaginar pecado afim deste.
Remorsos? Contam para nada. Revolta? Só desajuda.
Desforra? Pouco alivia. Poetá-lo? Ajuda um bocadito.

No último comboio da noite, Figueira-Coimbra.
Inverno (quando ainda havia invernos a sério).
O postal iluminado da Cidade a partir da ponte-ferroviária.
A pé para (a) Casa via Loreto/Cerveja/Triunfo/Fiaco/Escola.

O rapaz de Viseu que ajudei nos Correios.
A casa que afinal não arrendei na Rua das Árvores, FF.
O campo do Esperança de Lagos em 1976, então pelado.
O rapaz de Aveiro a quem indiquei a Avenida Elísio de Moura.

Na Portagem, a Menina a quem dei gomas.
Em Mafra, a saúde física, a força toda.
No início de 2005, tocando o fundo, quase sem força.
Dura dúzia de anos volvidos, vislumbre luminoso.

E a senhora? Que me diz de Kierkegaard?
Digo-lhe que o nome significa Adro-de-Igreja.
Muito bem. E agora para 100 mil euros: E Miguel Torga?
O Torga não me diz nada. Pagam em cheque ou fazem transferência bancária?

Relacione Felicidade-Conjugal com Sabedoria-Popular.
Pode ser em quadra? Pode sim, faça favor.
“Se queres ter um lar feliz / Podes copiar pelo meu /
Cá em casa manda ela / E nela mando eu.”

Julgo haver mais humanitarismo para com o criminoso.
Sei que a vítima é depressa arredada do radar.
Há crimes para que não deveria existir prescrição.
O violador de crianças merece a guilhotina.

A senhora não crê na reintegração social do perpetrador?
Depende.
Depende de quê?
Não: depende de quem.

Não temos de concordar sobre tudo com todos.
Estamos todos condenados à morte, todos.
Fomos todos condenados à vida, todos.
Ninguém foi condenado à concordância com todos.

Uns (muitos) no álcool.
Outros (tantos) nos opiáceos.
Mais ainda nas religiões.
Fica cá, porém, exactamente ninguém.

Não visites quem te não convidaria.
Não te deixes convidar por quem não visitarias.
Percebeste, Tarântula Maria?
Percebeste, Búteo Zacarias?

504

    Desconhecer a Lei não pode ser.
    Ou antes: não se pode invocar o desconhecimento da Lei.
    Pode desconhecer-se a Lei, mas não safar-se a tê-la desrespeitado.
    Ou se calhar até pode – depende do desrespeitador.
    Algumas coisas são melhoradas, é verdade.
    Outras seguem sendo mais-do-mesmo, verdade também.
    Diariamente, em Portugal como fora deste paraíso, a realidade é feita gato-sapato aos & pelos diversos níveis de poder. Não me refiro apenas à notícia – refiro-me por igual ao ângulo escolhido através do qual nos chega ela. Por palavras mais brutas mas mais sérias também: há muita maneira de ver a cona à carriça.
    Em certa época, queimei anos nesse ofício inglório que, em teoria, consiste em apurar a verdade factual para comunicá-la o mais objectiva & imparcialmente possível.
    O que seja a verdade, não sei.
    (Mas invocar desconhecimento não serve.)
    O que seja facto, depende.
    (Mas invocar dependência dá mau aspecto & pior fama.)
    Objectividade & imparcialidade são quimeras tão sérias por fora quão putas por dentro.
    Não me arrependo de ter oficiado plumitivamente. Contas feitas, são anos que arderam – como ardem todos, seja-se isto ou desista-se de ser aquilo.
    De vez em quando, episódios dessa era retomam de mim algum tempo-de-antena. Há de tudo: coisas bizarras, cenas cómicas, facas & alguidares, comum estupidez, filhodaputice espontânea e/ou organizada, honestidade tão mais áurea quão menos em moda. Fartei-me. Não era a profissão que estava a mais – era eu que estava a menos: e a menos cada vez mais.
    Lembrei-me de depor isto hoje por me não faltar papel – e também para estrear este marcador de um euro, de cuja existência factual, objectiva & verdadeverdadeirinha aproveito para V. dar notícia.


22/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 499 a 501

© DA.


499

Segunda-feira,
21 de Junho de 2021

    Isto é uma tralha de papéis que o Tempo amarfanh’amarelou, usando para tal o meu corpo. Quase todas a lápis, sem contexto, as anotações semelham interjeições bradadas por esses barbudos fala-sós que pelas ruas ameaçam um apocalipse que tarda a chegar. Uma delas: 5.ª-F.ª, 22/3, 2.º, Enf.ª 9, cama 77 (ou 37?). E ao lado a cabeça de um boneco mal desenhada. Outro rasgado só com o seguinte: o casalito de rôlas veio & partiu antes do gaio. Outro caco de papel enumera onomásticas de heteróclita justaposição: killer Henry H. Holmes / Richard Speck / Robert Buller falhado killer de Debbie + Krista Harrison / Joly Braga Santos / Abel Salazar / Amália Rodrigues / José Rodrigues Miguéis / Romeu Correia / Baptista Pereira (o filho era Tito) / Aristides de Sousa Mendes / Freitas Branco. Outra cabeça de boneco desenhada sem talento. Mais duas destas. Outra surge mais trabalhada mas idem extravagante: 70 / Manson / Zodiac / Hillside Strangler / Keneth / Bianchi? / Angelo Bruno? / Dean Corll / J. Wayne Gacy / Gary Gilmore / Lynette Alice Fromme “Squeaky” / Gerald Ford / Sara Jane Moore / Son of Sam / palhaço Geraldo Rivera / People’s Temple / Jim Jones (cong. Leo Ryan) / Bundy / arre(n)dar / Millroy usa óculos, cabelo penteado a língua de vaca / L(J?)edburgh nem uma nem outra coisa / Virginia e as Carolinas / Boston de Blatty / Craven / TJS Sports Football Season Review / 1970-71 / 1971-72 / 1972-73 / 1973-74 Leeds champ. Liverpool cup / época victoriana / cantor Conway Twitty (Family Guy) / ZONA IND. PEDRULHA CINTURA MONTE/CAMPO. Segue-se (mas sem indicação de fonte bibliográfica) um fragmento de Alexandre Herculano, de que respigo:

    “ – É a entrada nobre para a quinta.
    A entrada nobre. Eu deito a vista.”

500

    Assaltaram um carro aqui na rua. Partiram o vidro do condutor, forçaram o canhão da ignição, acabaram por desaparecer com as mãos cheias de frio, espero que cortadas também. A polícia veio, chegou & fez como eu: tomou nota da ocorrência.
    Nos meus mais recentes 57 anos, foi este um dos mais aventurosos & palpitantes casos em que me vi envolvido. Bond. James Bond. Idemuno. Parnada Idemuno.

501

    Norberto Abílio Leandro Abel, vejo-o ainda com equívoca nitidez sempre que, à face do solstício da solidão, me dá jeito ver alguém. Coxeava como um soldado medalhado, seguia mais vezes de bicicleta pela mão do que montado nela, teria então uma fabulosa legendária mítica matusalémia idade superior a sessenta anos – quando eu, aos quatro, começava a ser escritor de sentenças bruscamente interrompidas, a que hoje chamo versos.
    Era gentil, ameninava-nos com cortesias de adulto. Habitava uma barraca sórdida, espécie de materialização com janelas de um aterro-municipal. Tinha talvez – nunca menos de – vinte filhos, alguns dos quais tinham cometido a insensatez de nascerem raparigas.
    O trabalho dele era fonte de rumores soprados expressamente no intuito de adensar o mistério. Uns, que andava ao papelão e às garrafas para vender nas fábricas; outros, que dormia com a cabeça de sentinela a uma caixa de ébano no interior da que obscuramente cintilavam libras de oiro com que se pagava o pré aos soldados ingleses que nos vieram safar da horda napoleónica; eu, eu desconheço que fazia ou faria ele durante o dia. Saía, bicicleta pela mão, de madrugada, regressando a seu palácio confuso pelas violetas do entardenoitecer. Não era um bêbedo. Não praguejava nem blasfemava. Julgo que o confundia o facto de ter nascido. 
    Tal hipótese faz-me sorrir & consola-me, pois que, a ser vera, Norberto Abílio Leandro Abel não estava afinal tão desarmado nem tão só à face de um certo solstício que, já desde os quatro anos de idade, julguei apenas meu, tão-só meu & de ninguém mais que meu.

21/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 495 a 498

© DA.


495

Domingo,
20 de Junho de 2021

    Na madrugada gritada pelas gaivotas, os pescadores recolhem um cadáver humano dentre a rede plena de pescado vivo. É uma hora cinzenta. A morte do homem decorre de uma trama relacionada com uma seita religiosa. Não foi Deus a causá-la, foi o dinheiro, que é outra espécie de deus. A polícia demora menos de um mês a juntar as peças & a levar o caso a julgamento. A seita é desmembrada, a normalidade retoma as rédeas. O morto não deixou família. É um item do arquivo municipal, pó de pó na vala-comum. As coisas seguiram o seu trâmite normal – e que se chama esquecimento (ou, para quem fez alguns estudos, olvido).

496

    Ante mim, retratos sucessivos de um homem nascido menos de quatro meses antes do meu Pai. Sucessivos por um a um – e sucessivos no tempo contado & descontado a anos rápidos: criança, rapaz, mancebo, homem-feito, maduro, velho.
    É figura que me interessa. Há densidade no pensamento que deixou dito & escrito – mormente nesta última forma. Era dotado, este homem. Algum ascetismo (não digo monástico, digo não-mundanismo) arvorou em modo-de-vida. À sua maneira, venceu.
    Há alguns já que ando para reler volumes seus. Estreei-o na juventude, aí pelos meus vintes. Sinto esta minha idade de agora (ou de momento) apropriada a tal releitura. Pode ainda ser que sim. É de Vergílio Ferreira que falo, não de André Malraux.

497

    Um fio de terra extremado por duas árvores a oriente & uma solitária a ocidente. Emoldura-o uma profusão de verdes retintos. Costumo desejar esse caminho, que lobrigo da minha altaneira marquise. Qualquer dia, talvez. Talvez qualquer dia o cumpra pedestremente, como aliás tenho cumprido a vida. Como aliás toda a gente, julgo, tem cumprido a vida. O caminho é que naturalmente difere. Ainda bem: aquele é meu. E a marquise também.

498

Dois homens trabalhando a terra de manhã ao entardenoitecer.
O trabalho progride ao ritmo adequado, apurado por séculos.
É uma região áspera, domável mas trabalhosa, úbere mas ímpia.
Pode ser contada, pode ser cantada – se o não for, não lhe importa.

O povoado é calçado a pedra própria daquele chão.
As ruas são vielas cuja antiguidade resiste às manhãs.
Na eira, uma criança, uma velha, uma lata com pregos.
Ontem, morreu uma senhora; hoje, morreu um senhor.

A feira é mensal, faz-se na vila, dista dez km.
A defunta, Maria Arcanjo; o finado, Francisco Nelson.
A feira tem importância, fá-la brilhar a utilidade.
Também os falecidos a tiveram, há que deixá-los ir,

deixá-los ser terra trabalhável.

20/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 490 a 494

© DA.


490

Sábado,
19 de Junho de 2021

    Violeta Lobo, coitada, tinha esperança de, fumando por boquilha & arvorando ademanes à maneira de belle-de-nuit, chegar a poetisa caprichosa & decadente – se não a uma Florbela E., ao menos a uma Natália C. Acontece serem mais os lobos do que as violetas.

491

    Não tenho – ou sou – de importância.
    Não digo tal de Vós – digo-o de quem mais bem conheço.

492

Profusão. Cintilação. Circunvolução. Sinalização.
Contingência. Eminência. Iminência. Incidência.
Nisto tenho andado a vida toda, senhores.
Nisto & naquilo, com este & sem aquela.
É sábado, posso ordenar iludidas permanências.
Que poderia interessar-me o banqueiro que rouba? Zero.
Pensa escapar rico à pobre condição jacente. Coitado.
Hermengarda faz cozinha & limpeza na casa-de-pasto.
Ganha os cêntimos dela, tem um filho que anda ao .
Conheço-o: chama-se Eurico, ronda pelo presbitério chamado Bota-Abaixo.
Já almocei com o meu Irmão Fernando comida feita por Hermengarda.
Acho que foi há três anos, antes desta merda pandémica made-in-China.

Cristina. Idalina. Etelvina. Coralina.
Abel. Leonel. Samuel. Nataniel.
Tenho entrevisto muita gente, ela por ’í (des)anda à vida.
Vou à marquise fumar, anda um homem desbastando mato.
Tenho de esperar que ele se vá, só depois reverei as aves.
Em uma caixa funda albergo o meu calçado. Tem muito erro caminhado.
Tenho outra para jornais, do tempo em que os havia em papel.
Havia-os em papel & eu escrevia neles.
Isso lá vai, uso de outro século, não importa.
Os sinais-naturais são, em semiologia, índices.
Indicam. A nuvem carregada: chuva iminente. Etc.
Eu quis chanfana, o Fernando quis febras grelhadas.

Curso. Recurso. Transcurso. Discurso.
Mestre. Silvestre. Alpestre. Contramestre.
Enredos deliciosos escutados com os olhos.
Léo Ferré em 1988. Fernando Pessoa em 1914.
A imundície invencível do imbecil mal-intencionado.
A Espanha 1936-39. A Alemanha 1933-45.
Os manos Sitwell. As manas Mitford.
O johnwaynesismo dos de pouca-mioleira.
O charltonhestonismo dos de zero-mioleira.
O cabrão do Mao mandando matar pardais aos milhões.
O cabrão do Estaline mandando matar compatriotas aos milhões.
Mas Van Gogh. Mas Shostakovich. Mas Poe. Mas Salgueiro Maia.

493

    O velho pai pede ao filho que fique um pouco. O filho anúi. O pai conta-lhe um enredo anterior ao nascimento do ouvinte. Depois, dispõe-se a fazer a sesta. O filho beija-lhe a testa, retira-se, conta voltar pelas primícias da Primavera. Fá-lo-á antes disso: o velho morre em Fevereiro. Relatam-lhe um óbito sereno, durante o sono da madrugada. O órfão voa de Helsínquia a Lisboa, aluga um carro, trata com a funerária, faz incinerar o patercorpo em Taveiro, entrega as cinzas ao cuidado do Mondego, devolve o carro em Lisboa, voa para Copenhaga.
    Na mesma sexta-feira da incineração daquele senhor, uma divorciada de 58 anos comete a falta de dar tempo & antena a um falsário de sentimentos cuja exclusiva paixão é a do dinheiro. A dita desquitada acontece ter algum de seu, aforrou-o em tempos menos maus. Conhece o fulano numa discoteca especializada no ramo baile-das-velhas. O mocho abicou a rata. Em menos de passado o semestre seguinte, já ele se untou com os sessenta mil euros dela. Viste-lo mais Vós? Eu não. Nem ela.

494

    A transfiguração dá-se, não se vende.
    Uma pessoa aproveita a noite para iluminar, de olhos fechados, os cantos da mente que o dia cru mais faz por obscurecer.
    É direito da pessoa tudo fazer no sentido de contrariar a contingência que a oprima. E é direito meu insistir neste ponto.
    Verdades fragmentárias, ou migalhas de luz, ou centelhas de pão, (con)correm à velocidade possível à mente. Mais lúcida, mais atenta; mais atenta, mais rápida: mais rápida, melhores versos.



19/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 487 a 489




487

Sexta-feira,
18 de Junho de 2021

    Receber a primeira luz (não são ainda as seis) do dia com Simone Kermes interpretando Polifemo: Alto Giove, do gentil Nicola Antonio Porpora (1686-1768), é bela prática iniciática. E mais ainda tal se, lá fora, despontam já, ao chamado do meu pão, pardais, pombas, o corvo, a poupa, o melro, o pisco, a arvéola. O milhafre não desce, mas já tive direito a uma gaivota (não sei se d’asa-escura, se argêntea).
    O dia, como prometido, nasceu glauco mas não frígido. Vou lavrando papelada sem pressa. A clausura, voluntária, não é de claustrofobia. É mero recato, em ordem as provisões, as fontes escritas, o maná melómano, os arquivos fílmicos – e a roupa lavada no roupeiro que lhe compete.
    Poucos minutos depois das nove, outra boa prática me acode: dezoito Lieder do magnífico Franz Peter Schubert (1797-1828). Já tive manhãs bem mais surdas. Redime-as, esta.

488

    O quarto terceto do 482 remanesce válido.
    Urgiu-me anotá-lo depois de ler certas linhas (não minhas, note-se) relativas à noite de 26 de Maio último. Conservo esse documento como ponto-de-referência. É um quarteto de páginas dotado de certa sinceridade técnico-objectiva: o meu corpo naquele anoitecimento súbito. E súbdito.

489

    Os campos-(ditos)santos estão cheios de ex-gente finalmente equalizada – mas só ao cabo de díspares modos de ganhar & de perder a vida. São agora gregário estrume – mas foram cápsulas individuais. Muitas navegaram esse mar chamado longevidade. Outras foram decepadas cedo. Cesário Verde, Franz Schubert & o meu Irmão Jorge Manuel não passaram dos 31 anos. Recuso que seja a morbidez a fazer-me redactor destas contas. Não me anima qualquer tanatofilia. Uso o meu tempo para pensar o Tempo, isso sim. Ontem, deitando-me cedo, reacendi o candeeiro & reoculei-me para lapijar este rol:

    pessoa
    animal
    côr
    alimento
    data (completa)
    ofício
    livro/A.
    rua/Coimbra
    História
    música
    filme/peça
    geografia
    panorama
    palavra-do-dia

    Aconteceu: os itens são catorze, como é de lei na fábrica do soneto. Também não é preciso ir a Salem tirar diploma em bruxaria para ver logo às primeiras que são artigos recorrentes na/da/quilo que escrevivo. O rol pouco liga à minha contemporaneidade mesma – é verdade que desgosto da época que me coube (& cabe). Interessa-me mais a realidade alternativa da memória, por mais fás ou menos nefas seja esta ficcion’actualizada. Também à suposta cronolinearidade não sou fiel. Interessam-me o sortilégio mental, a prodigiosa entropia das imagens, a autoridade lacónica do verso que, rimando-a, goza com a (p)rosa. Afeição & repugnância. Olvido & antecipação. Experimente-se:

    Miguel Godinho conduzindo o Dois-Cavalos.
    A seu lado, o cão de côr dourada.
    Bolachas ambos vão partilhando.
    É o dia 2 de Junho de 1986, segunda-feira.
    Godinho tem por ganha-pão a reparação de electrodomésticos.
    Passados 35 anos & dezasseis dias, aparece in Parnada Idemuno, de Daniel Abrunheiro.
    O capítulo é escrito na Rua do Padrão.
    É o ano de Chernobyl, também: pútrida perpetuidade dele.
    Höstsonaten, do glorioso Ingmar Bergman, enriquece o serão já prolongado.
    Dão imagens aéreas dos brejos de Proença-a-Velha, onde o menino foi reencontrado.
    Miguel Godinho estaciona, vai de cão à beira-rio, do fresco recipiendários ambos.

    Claramente, o texto-experiência imediatamente anterior é, ou resultou em, coisa artificiosa. Serve porém para pelo menos uma coisa, sendo esta: mostrar o meu processo. Prosa ou verso (para o caso, não há dicotomia divisora), é este o meu processo. Interessa-me fixá-lo. Para nada & porque sim. E ei-lo, mostrado & (a)fixado como antigamente os cartazes de bailes há muito bailados.


18/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 483 a 486

© DA.


483

Quinta-feira,
17 de Junho de 2021

    É-me preciso reconstituir a imagem do jovem H.C. viajando de comboio entre priscas prístinas montanhas todavia remoçadas pelo nevão que de noite tornou eterno o isolamento desta partida do planeta.
    A ocidente desta linha-férrea, B.R. escolhe uma hospedaria no litoral para completar o manuscrito da sua viagem pela Noruega.
    H.C. é de 1912-13.
    B.R. existe em 1954.
    Impõe-se-me a necessidade de ir de um a outro para obter uma espécie de constância, ou ambiência, ou aroma – ilusão tudo, bem sei, mas.
    Constância de bosquete em solo arrelvado; ambiência de avoengos vivos través o conforto da lareira perfumada; aroma a rosas orvalhadas de champanhe original. Todavia – e como sempre – é preciso tentá-lo por outras palavras.

484

    Em Proença-a-Velha, anda há muitas horas (28) desaparecido um menino de dois anos & meio. Mais de uma centena de agentes da GNR, bombeiros & outros operacionais da Protecção Civil buscam incessantemente a criança. Não se sabe se há gesto criminoso ou não na origem deste acontecimento. Apareceu a cadelita da família & uma peça de roupa do menino. É assunto o mais angustioso. Tudo está em consideração. Há binómios militar-cão no terreno. Drones perscrutam o perímetro aéreo. O perímetro é dado como de dez quilómetros de raio. O aspecto topográfico local dificulta, incluindo linhas-de-água & poços agrícolas, alguns abandonados.
    Ante tal situação, tudo se relativiza, esfuma-se tudo. A absoluta inocência do protagonista desarma qualquer arremedo de fé, ciência, moralidade, juízo. Em caso de crime por trás, mais ainda.

485

    Pela finitarde, o menino foi encontrado. Vivo, felizmente.

486

Crime & Bondade são atributos humanos, irreparáveis ambos.
Aquém & além do factor humano, a impiedade é inimputável.
Um trecho de rio, sombra recebendo do arvoredo a si anexo.
Citrinos silvestres pintalgando a encosta baldia.
Renôvo perpétuo da natural máquin’antiga, casa nossa.
Nem susto nem ânimo, pedra onde é pedra, água onde água.

Algures, a pessoa vai colhendo sinais expostos, ao des(a)tino.
Ali, houve a fábrica; há muito ossadas, quem a funcionou.
Filhos, afilhados, enteados, órfãos, ascetas, náufragos.
Trigo, centeio, aveia, cevada, milho, panasco.
Livro, tesoura, bule, alguidar, seira, torneira.
Bonança, espera, demora, aposta, viagem, insistência.

José Luís Martins Miranda, ausência justificada.
Terra-de-pão o não espera já, outro mestre terá.
Carlos José Duarte Conceição, ao sol como à chuva.
Pelas filhas se reparte cada tareco, cada tostão.
Jorge António Lindo Santos, gaibéu sem retorno.
Mármore todos, sombras em alguma frase ocasional.

Ou algum verso.



17/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 481 & 482

© DA.


481

Quarta-feira,
16 de Junho de 2021

    Não há-de ser hoje que eu confunda Walter Scott com Scott Walker. Nem a mão-esquerda de Osbert Sitwell com a dextra do dito senhor. Isto, indo lá com calma, organiza-se. Muito cedo, pela fímbria da alva, vi telas de Mário Botas & de Paula Rêgo. Escutei o disco de 1973 dos Roxy Music. Os manos do boletim-meteorológico prometem abaixamento de temperatura de hoje a sexta. Oxalá. Posso abominar (e abomino) horóscopo-zodíaco-charlatanices, mas cá tenho, de vez em quando, alguma fèzada nos áugures da profeci’atmosférica.
    É dia de ir ver o Zé. Por enquanto tenho o 12 dos Actos dos Apóstolos para entreter a caspa. (E pronto, Herodes já se lixou, para desgosto dos judeus.) Grassa fora a hora em cinza: nublação uniforme, nem rasgo áureo de sol. Eu gosto. O arvoredo choupalino parece mais compacto, mais conforme a solidariedade arbórea. Flúi o trânsito na via-norte. As televisões embandeiram-em-arco com o triunfo português de ontem (0-3 na Hungria). As massas são fáceis, vão a toque lombar de cajadadinha, problema nenhum, despedem duas mil pessoas da TAP mas dois altos-tachos desta vão selfielmar-se em Madrid a dizer que os espanhóis são bons para recrutamento, abençoados sociopatas.
    Anselmo, da Tipografia Efebo, já pediu contagem de anos de trabalho com desconto. Reúne em Dezembro próximo os requisitos legais para a pensão de reforma integral. Não anda contente, achou-se de repente envelhecido, sempre gostou de trabalhar, sempre são quarenta & oito anos a dar-lhe no duro.
    Temporal saraivante anda varrendo Minho & Trás-os-Montes. Custa ver o labor agrícola devastado. Junho roubou a Maio a época electrotrovejante.
    A notação noticiosa que vou fazendo, todavia, não é nem mais nem menos fiável do que as lucubrações que dedico ao imaginário meu recorrente. Ou assim: entre nós Portugueses, árvores derrubadas pela ventaneira; entre os antigos Romanos, Lucina presidindo aos partos. Assim articulo o meu dia. O facto (verdadeiro, indesmentível) de eu passar ao lado de uma grande carreira não me obriga a passar ao lado do Tony Carreira. Digamo-lo assim no intuito de fazer sorrir o fotógrafo.
    (Aos oito minutos para as nove, beleza: a pucciniana Tosca povoa de sofisticação esta habitação. Muito pode a Grand’Arte. Fine Atto Primo.)

482

Dura o mistério quanto dura a ignorância.
Como é morrer de sede em pleno mar?
Palavras, trá-las o vento: humanas nem todas.

Que dia viveste?
Que dia tiveste?
Que dia fizeste?

Revi a horta anexa ao Lar do meu Irmão.
Achei-a magnífica, próspera, laborada.
Bela obra é ela, vale bem versos.

É ainda válido lançar os dados.
Há ainda inacabamentos.
Há ainda o que começar.

Não V. peço contas de Vossos anos.
Algumas dos meus V. conto todavia.
Mal V. não faz – e a mim, algum bem.

Vi algum sol, ofuscou-se depois a finitarde.
Quando volvi, já arrefecera, ventava um pouco.
Em doméstico recato, não espero nem desespero.

Pai, mãe, casalito de filho & filha.
Em zona lacustral-montanhosa.
As crianças brincam na água, os pais veneram-nas.


16/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 478 a 480



478

Terça-feira,
15 de Junho de 2021

Orlando Azul frequentou o Trinity College, Dublin. Eu não, nunca.
A família Castro-Azul era próspera; Orlando, brilhante.
Deixou folhetos: hoje, como então, em absoluto ignorados.
Poderia (deveria) tê-los encorpado em volume, não o fez.
O que fez, fê-lo em privado-livre, seu modo único de vida.
Sabe-se que queimou resmas de manuscritos nos últimos meses.
Não teve um Max Brod.
Não teve um Silva Pinto.
Esses últimos tempos foram há inacreditavelmente muito.
Não penso nele como se usa pensar em gente malograda.
Orlando não era, nunca foi, nunca se deixaria ser um malogrado.
Creio que nem o próprio pai alguma vez o pensaria assim.

A sanidade? Dizei-me Vós algo dessa ficção, em este mundo.
Alguma vez me vistes apedrejando andorinhas, por exemplo?
Lavemo-nos todos antes de morrer, depois não conta.
Há quem se lave queimando-se papéis, conte o que contar.
Mas apedrejar andorinhas?
Eu não, nunca.

479

    Susana, até o fim, não desmereceu (d)o companheiro.
    Muito porfiou ela em prol do reconhecimento artístico que lhe era devido, verdade seja dita & lembrada, muito porfiou ela.
    Beneficiou Maló de sua Susana? Quem de-boa-mente o negaria?
    Uma tia dela, Elisabete Regina, era fiel cliente do taxidermista: queria consigo para sempre os animais de sua exclusiva estimação. Susana queria bem aos animais também – mas a Maló sobre tudo o mais.
    Assim foi até 1989. Então, o Nada aboliu o Depois, a tudo & a ambos volveu perpétuo Antes.
    Ou, por assim dizer, empalhou-os.

480

    A minha materAvó, Cândida Leite, conheceu todas as décadas do século dela. Por poucos dias, não posso dizer o mesmo do grande Samuel Beckett: morreu aos 22 de Dezembro de 1989. Nascera perto de três anos depois da minha Avó, morrendo cerca de cinco antes dela. Apesar de mais novo & de menor longevidade, foi Samuel – e não Cândida – a receber o Nobel da Literatura. Para este facto incontornável, deve sobremaneira ter contribuído outro facto incontestável também: ela apenas sabia assinar a singela dupla onomástica que civilmente a resumia. Mas sempre legou ao mundo a minha Mãe, que só há dez anos se faz esperar como Godot.
    Acudiram-me ambos à mente, em o hoje correndo.
    Amanhã, talvez o dia seja para, sei lá, o meu paterTio Arménio & Malcolm Lowry, não sei, ainda a meia-noite se me não deu à janela, esta mesma a que, de olhos fechados, deixo cair o lápis.

15/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 477

 

© DA., Sr.


477

Segunda-feira,
14 de Junho de 2021

Manhã

A prima recorda carinhosamente o primo na infância
Esse mesmo primo depois volvido famoso mas contrariado
O rapaz que caminhava milhas com o pai pela mão
É bonito o quadro em invisível moção que da voz dela surge.

Concha, a prima; Samuel, o primo; 110 anos lá vão
Tanto faz ter sido há século & tal quanto ontem
Ontem é passado para tão sempre quão um amanhã já gasto
Se descuidamos o passo, atolamo-nos não sabendo ler nem escrever.

Há pouco, os camiões em rota de abastecimento
Lá iam eles gigantemente pela pequenez quotidiana
Lá seguiam carregados de coisas dinheirosas
Muito diligentes devorando asfalto, enxugando horários.

Ri-me da cena em que um G. desmascara uma cègada
Uma suposta medium em aparição de criança morta
São páginas escritas & publicadas em Janeiro de 1880
Já pois lá vão bem mais de quinze dias.

Tudo se alinha em microcosmo suficiente
Dados, imaginados ou roubados, os elementos imperam
Concha & Samuel, o tal G.(S.), a charlatanice mediúnica
Pai & filho entendendo-se sem abrirem as bocas.

Antes ’inda do meio-dia deste mesmo dia
A favorita do rei desperta rancores mui azedos
Duzentos anos passam no fósforo do costume
Sacham para milho as mulheres de Prelada.

Águas sãs, lanifícios fortes, pedra imemorial
Urde-se o fio, leva-se ao tear, não é festiva a época
Um rapaz doente dos nervos não sai do pátio
Tem quarenta anos, é um menino anacrónico.

Santíssimas irmandades do Santíssimo
Passeiam ao sol o Corpo de Deus
Corpus Christi de Platero y Juan Ramón Jiménez
Não longe é essa raia de Espanha.

    Se Vos parece confusa esta enumeração, posso sempre passar a mais prosaica concatenação de elementos. Nada me custa, favor é nenhum, por quem sois. Ramos/fogaças, foguetes rastilhando de enxofrante fedor a caminho de Deus. Um coelho vivo arrematado por 37$50.

    Leitor, sou o único vivo restante sobre tão remo(r)tas coisas. O reinado de um George IV, que não era naturalmente natural daqui. Um João Mocho & um José Assis conversam em frente à capela. O sol tornou-se áspero, a caliça range & greta-se.

    De pedra, a escadaria goza a sombra da figueira velha. Abre uma lata de pêssegos meados em calda a Belarmina de Alenquer. O homem dela é Jerónimo, muito gosta ele de falar alto pela aparelhagem. Da Lajeosa, Casimiro Dâmaso pensa botar casa por aqui.

    Um Fernando foi para Lisboa, conta reformar-se lá, voltar de vez só por velhice consumada. Um Pascoal ganha 140 escudos por dia como pedreiro. Não sei quanto por dia auferia o tal quarto George. Talvez mais qualquer coisita do que o dito canteiro.

    Murmura no regadio a água muito pura. Vê-se no adro, brincando sem bulha, os primitos Samuel & Concha. Tasquinha erva molhada o bom burrico Platero. É soado o meio-dia.

Tarde

    Tenho, devagar mas imparavelmente, evitado contrariedades que, em mais novo, não saberia arredar sem retorno. Ontem à noite pensei nisso, hoje à tarde penso de novo nisso. E depois passa-me, saudade não deixando.
    Um panorama de terra escocesa abre-se ao apreciador.
    Longe, na loja de utilidades, o velhote Marto lida.
    Em Aguiar da Beira, vai varrendo o corredor
    de sua casa, mas sem pressa nem fervor,
    santa em andor distraída, a velhota Margarida.
    Alheado do mundo, redijo uma tarde que já se me não faz cedo. O Gatito & eu batemos a sesta, corridos estores & cortinados em penumbra. Tal par de horas foi-nos de doçura, exilados adentro nossos escaninhos íntimos. Ao despertar eu, já o meu felídeo renascera em sumo apuro de suas faculdades: espreguiçou-se em arco olímpico, escancarou a boquinha aguda, eriçou pêlo a pêlo o seu níveo manto, foi beber água como um justo. Por mim, refiz o diagrama nervoso com uma estocada de cafeína a preceito, esfreguei as fuças com a água mais fria que saquei d’el-cano, reiterando ao espelho um rosto de quem tinha vinte anos há trinta & sete idem.
    No televisor, pedaço de uma cidade por que sumariamente cirandei nos primeiros dias do Maio de 1992: Sevilha. Se calhar, nunca mais lá volto. Sem ser por tara de miron’erotómano, recordo a beleza estonteante das Sevilhanas, o brio delas, o garbo delas, a corporeidade a tira-linhas delas. Quase três décadas volvidas, é lembrança gentil ainda partilhável com Vossas Senhorias.
    Rapazes da minha terra mostram cabeças encanecidas.
    Às vezes, topo algum deles quando desço ao burgo.
    Lá andam eles lidando, tratando de suas vidas.
    Uns são já avôs de criancinhas apetecidas.
    Eu ’inda não, não o quis ’inda o Demiurgo.

Noite

Ante a noite nova, sinto antigualhando-se-me a atenção experta,
exorar valendo nada ao que ou a quem não for por não ser nem haver.
Há muito não me descaso & saio pela nocturna via aberta,
passos sem relógio atirando ao aonde vou & ao que vier.
Na marquise, vertical, recebo o poente já salmão, já violáceo.
Já refrescam sombras a Geria, a Cidreira, a Póvoa do Pinheiro.
Moravam por ali o Zé Lacoste, o Asdrúbal & o Acácio:
emigraram os dois primeiros, mora ora em Alcarraques o terceiro.
Sair, saio só quarta que vem, lá quando a tarde for meã.
Então até, por casa fico, leio, escrevo, mexerico, comporto as horas.
Planos, nunca tenho – tenho por infinito o eventual amanhã.
Devo ir dormitand’acordando, petiscando biscoitos a desoras.
Alheias genealogias espiolho de volumes velhos meus companheiros.
Tenho caixotes deles, pecúlio de pios anos irretornáveis.
Eu, ao tempo, oficiava, até ganhava alguns dinheiros.
Hoje folheio mortandades, nomes & datas enumeráveis.
Pensa adorn’alindar-se a tromba quem se arremesquinha:
tenho por ’í-além visto muita carranca esborratada.
Não sei que seja metrossexual – o mais certo é ser nada,
nada que ressuscite da morte a lázara moscazinha.
Já o trapo de flanela pus de lado,
refinado lençol me amortalha.
Se de algum sonho avindor despertado,
sorrio despertando quando calha.
Normalmente não, todavia, no entanto, mas & porém.
O mor é acordar modos-que alquebrado,
lento, macilento, remelento, pitosga, atapetado
do comichoso ácaro que comigo acorda também.
Estar-nos-livros é tido por saber-de-fonte-segura:
com os meus não conteis, se for esse o aspecto.
Eu rio-me por fora – mas por dentro, circunspecto,
não auguro ao que escrevo grande fortuna futura.



14/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 475 & 476

© DA., Sr.


475

Domingo,
13 de Junho de 2021

    Este é o caminho, hei só que segui-lo afora.
    Caminho não é masculino de caminha.
    É rectilíneo labirinto, torta recta.
    É o que de trás era já porvir.

476

    Às seis da manhã, primeiro pão para os primeiros pardais do dia. É momento da mais segura alegria. O prazer de estar vivo toma-me o instante, que não regateio à escrita. Lavada da intempérie do entardenoitecer de ontem, a terra corisca de saúde aeróbica. À marquise, atirado já o pão mole, conto os pardalitos. As pombas não tardarão, atraídas pelo fervilhar dos pequenitos.
    Antes dos pardais, vi o corvo.
    Era um fragmento alado da noite acabada.
    Vive no bosquete, tinta móvel nigérrima.
    Muito belo, velho talvez, conhece o Tempo.
    Não é comum dar-se por visível.
    É meu privilégio mirá-lo na alva fresca.
    Traço o corvo negro com lápis amarelo.
    Tento inscrever-me o Tempo dele, escrevendo-o.
    Às vezes, ele é vários – como Pessoa.
    Aos domesticados, baptizam-nos Vicentes.
    Este é porém, como Ferré, sem dieu nem maître.
    O meu é de si só.
    Em perfeito silêncio o contemplo da marquise.
    Nobre como uma atitude rara.
    Ele sim dono de si, mestre da solidão.
    Nenhum dos versos (chamemo-lhes versos, vá) acima alinhavados pretende fazer do seu redactor um portador de candura seráfica, um anjo hipersensível, um falso dado a falsetes. É (sou) mais simples: em menino, fui feliz sem necessidade de estímulo, motivo ou justificação; agora, sou-o quando me levanto cedo & tenho pão para dar à passarada indomesticada. É beleza, pronto. O lápis amarelo funciona, esta é uma manhã feliz. Organizei os livros em trânsito ledor, esperam-me horas de enriquecimento vinculativa carga fiscal – sem contas a prestar, portanto: nem ao Estado, nem a medíocres.


Canzoada Assaltante