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JANEIRO
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Segunda-feira,
4 de Janeiro de 2021
Luísa devolve o despertador a Amândio, já de nenhum dos dois precisa, vai deixar o quarto, o bairro, a cidade, o país até. Não se demorou muito entre nós. O contrato terminou, ninguém lhe deu sinal ou lhe fez convite de renovação. O mesmo Amândio anda de olho noutra, uma Júlia da mesma fábrica, gorda, voluptuosa, saciável Júlia.
Em menina, na cozinha da avó, água a ferver queimou o lado esquerdo do peito de Luísa, um pouco do ombro também. Ficou-lhe para sempre aquele ricto encarquilhado da pele atingida. Fez pouca escola, mandaram-na servir. Serviu. Também foi deixando de servir. Armando foi quem lhe arranjou contrato de um ano na fábrica. Depois os donos venderam aos espanhóis, cortaram na arraia-miúda.
Armando arranjou-lhe uma promessa de limpezas em casa rica no Luxemburgo. Lá vai ela. Passam trinta anos, trinta e dois, mais um: idade que Deus-Cristo fez. Luísa tem dois filhos rapazes de dois homens, um italiano e um ali de Portalegre.
Amândio ainda se lembra dela. Às vezes conversamos, não de Júlia, só de Luísa. Júlia era de má índole. Casada já na altura em que Luísa devolveu o despertador a seu dono. O marido de Júlia andava na pintura, dava serventia quando não havia que pintar. Ela meteu-lhe os cornos sempre, não foi só com Amândio. O porco do Albano gabou-se sempre de a ter comido anos a fio, mesmo durante o Amândio.
Estas historietas são de uma banalidade triste – mas não tão triste que impeça as pessoas de querer viver. Querem sempre viver, por menos sentido que tal verbo pareça ter. São como a terra, por assim dizer. Gastam o ar, respiram a água, domesticam no lar o fogo. Vão a festas, de que aliás os funerais fazem parte.
A irmã de Júlia é Graciosa. Mora na casa verde da curva para o adro. Nada tem do feitio da irmã. É séria, é limpa, não merece que a confundam com a mais nova. Há mais duas irmãs, Filomena e Vitória.
Amândio tem irmão e irmã, Jorge e Piedade. Cresceram na casa azul do pátio. O senhorio desta casa é o mesmo da de Graciosa.
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