© DA.
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Terça-feira,
16 de Fevereiro de 2021
Descemos da sala de direcção ao bufete. Era no Ateneu, quando ainda funcionava. Já então para todos nós era vetusto existir. Valeriano ofereceu o chá & os biscoitos. Laureano preferiu ponche a ferver com uma unha de limão. Razoavelmente, chovia lá fora, mal se distinguia a catedral través a bruma d’água. Não éramos infelizes nem eufóricos. Demétrio trouxe uma braçada de lenha, Aurélio acendeu o fogão ao meio da sala. Anoiteceu sem dor aquele nosso mundo. O doutor Belmiro recordou primórdios da mocidade académica que lhe coube. Gasparilho foi buscar o tabuleiro, jogou uma partida infinita com Calvino. Eu mirava a chuva aumentando a noite. O gato do Ateneu chamava-se Tenório, como o atum de lata. Era manso como a morte alheia. Nada disto é já – nem eu sou, senão esta tinta neste papel, este papel de que Aurélio se serve para acendalha.
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Lassos laços torno ’inda mais brandos
mercê de indiferenças sossegadas.
Nem grandes nem pequenos são meus nadas.
Daqui já não sai broa p’ra malandros.
Lascarinhos não topo nem suporto.
Tragédias de tostão já não assino.
Tudo é, enfim, vidinha, é destino,
que o Tempo só se vence quando morto.
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Várias vezes me ocorreu já sentir que o enredo de A Tempestade se reporta a algo acontecido aqui na vizinhança. (Não, não me refiro à peça de Shakespeare mas à narrativa de Ferreira de Castro.) Sei & não sei porquê. Não só essa leitura se me emaranha com os reais vividos. Outras páginas me parecem dias com suas noites. A Aventura do Serpente Emplumada, de Pierre Gamarra, ainda me faz estremecer de júbilo: “Tudo começou numa noite de Dezembro, uma noite de tempestade, em que toda a montanha estremecia sob as rajadas do vento.” Tentando adormecer sem gravidade, é nessa aldeia mesma de Fabiac, nos Pirenéus, que tento. A vida paginada é mais preciosa. Neste quarto mesmo, a pilha de volumes conhece a espera. Tem sido sempre assim – mesmo quando errei fora daqui.
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