03/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 20


20

Terça-feira,
2 de Fevereiro de 2021

 



    A memória das bombas alastra-se ao porvir. Desconhece uma geração o que outra sofreu & o que sofrerá outr’ainda. Em uma sala lateral, raparigas costuram enxovais, na parede, enclausurado de madeira, o relógio conta a mais antiga história. À varanda, a avó respira a brisa molhada de madressilvas. Vozeia em baixo volume a telefonia. Já dentre elas se aparta Irene, vai à copa tabuleirar chá, biscoitos, compota, pão-de-segunda. Uma das bombas explodiu no talude mais perto da fábrica de vidro. A avó era infante ainda, nenhuma das costureirinhas faz ou tem a mínima ideia da pânica rotina desses dias inumeráveis.
    A praceta redonda tem quatro bancos para os velhos. Pombas, plátanos, pó, pasmaceira. Tilinta de bicicleta o moço padeiro, vai de distribuição porta-a-porta. Os velhos são filhos de combatentes pulverizados pela derrota. Todos passaram fome, humilhações, ultrajes, infâmia, sede. Tornaram-se velhos ainda em crianças. Sabem coisas de que não falam. Preferem escutar, certos que estão da morte. A avó conhece-os a todos, sabe-lhes o código, o mesmo pó a polvilha. A água das grandes chuvas permanece nas crateras criadas pela destruição bombástica. A geração seguinte nadou nesses paúis. São agora elementos da normalidade.
    Por nos ser interdita a totalidade, é pelo fragmento que vamos. Colamos peças de peças a peças. Duas frases esfarrapadas do cego da Rua dos Sapateiros ouvidas no antigo Largo do Pôço. Rapazes aprendem o ofício de caixeiro do comércio a retalho. Nunca voltarão à escola, isso lá vai, acabou-se a infância, a bandeira é comer todos os dias.


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Canzoada Assaltante