Blind Woman - New York - Photograph by Paul Strand (1916)
Alegoria perfeita
Queira o meu gentil e leal leitor não desconfiar de
eventual publicidade enganosa no título da crónica que hoje lhe chega a mãos e
olhos. É perfeita a alegoria com que o CM
de terça-feira, 11 do corrente, decerto involuntariamente embora, me
presenteou.
“Cego dá tiro nele
próprio ao limpar uma caçadeira” – este o título de uma notícia de quatro parágrafos que
muita gente há-de ter lido também. Lendo-a eu, não pude obstar a que me tomasse
a mania de tresler de viés a realidade. Naquele pobre homem de 70 anos, que se
chama Cristóvão Valente e reside na Rua do Casal (Avintes, Gaia), eu vi, ou li,
Portugal. E na acidental caçadeira, democracia. Pois. Pancada minha. Portugal,
porque cego. Democracia, porque contra o próprio povo virada.
Ao sair de casa para ir à Rita cronicar, não era este o
mote. Era a lembrança de eu ter sido alguém mais feliz do que menos no Inverno
de 1988/89. Trabalhava então no turno nocturno de uma escola. Apanhava o
comboio crepuscular para lá, regressava na mesma carruagem por volta da
meia-noite. Jantava no Barroca, que me saudava por senhor António, ao que eu redarguia boanoitando-o por senhor Professor. Era o nosso inocente
sketch de cada dia.
Eu comprava livros ainda. Conheci então a poesia de
António Osório e a de João Camilo. Li Vargas Llosa e Ezra Pound. Morava na
Figueira da Foz, Rua Vasco da Gama. No piso de baixo, a senhoria era uma mulher
sozinha como o sonhar cujo deserto resid’existencial lhe atraía uma aura
fantasmática de gatos e gaivotas. Da minha marquise, via-a regando as begónias
da sua discreta solidão.
O ar marinho tomava conta de mim todo nos viáticos ociosos
a que procedia pelas ruas mais antigas do burgo, a que as casas envelhecidas de
amarelo-âmbar conferiam uma respeitabilidade perpétua e melancólica.
Acasalava-me eu então com uma rapariga recente, decente e
docente, ela também. De muito branca natureza, eram para ela sinónimos
inextricáveis as higienes corporal e moral. Tinha lido A Máquina do Amor da Jacqueline Susann aos doze anos, o que diz muito
da sua precocidade, a qual se reflecte hoje, muito inflacionada, na filha que
muitos anos depois veio a ter sem meu concurso biológico e sem minha
responsabilidade civil. Os nossos dois salários de jovens professores eram mais
do que suficientes para arejar a casa, o pátio, o picadeiro dos dias e a pertinência
humanista das noites, que então eram mais antecâmaras de (a)manhãs do que
dispensário de tantos ontens que já não cantam.
Mas então e o cego? Mas então e a alegoria? Quase dela me
esquecia, com isto da involuntária nostalgia (ia, ia, ia) de professor com
escola e futuro. Se calhar, pode que não seja assim tão perfeita.
Recapitulemos: o infeliz cego que por acidente se alvejou a si mesmo vale por
Portugal, que não tem feito outra coisa do que não ver e se ferir na cabeça,
tronco e membros. A caçadeira vale pela alegada democracia do regime de fome em
vigor há 35 anos, descontados os três primeiros pós-Revolução. Mas.
Mas é que a alegoria (qualquer alegoria e qualquer outra
coisa na vida) só se alça à perfeição quando é isenta de paradoxo. A tal
caçadeira, supostamente democrática, não aponta apenas ao cego de Avintes.
Aponta-nos a todos. E acerta-nos em cheio.
E quem a dispara (lá vem o paradoxo) – é um homem chamado Coelho.
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