Haja saúde
Entre duas entrevistas, pausa para uma chávena no Café Pedrosa e uma ou duas das Cartas Espirituais de Frei António das Chagas (1631-1682), que na década de 50/XX o Professor Rodrigues Lapa seleccionou, prefaciou e anotou.
No mundo da manhã, água pulverizada em poalha enverniza a cinza do ar. Os cidadãos morcegam pelas ruas, catrapiscos, de umbrelas nas patas. A chuvinha magritta as pessoas, clona-as, põe um chapéu-de-coco até nas mulheres. Apesar do calendário, a Primavera não arribou as fauces coloridas, não ainda.
No café, um homem pequenito como um matraquilho a pilhas encosta as gangas ao balcão e moraliza sobre o sistema nacional de saúde. Vem de uma consulta, perdeu a manhã toda. A verborreia paraclínica do pequenito acicata a gula hipocondríaca de uma arara sexagenária, provavelmente a mulher mais doente do mundo. Logo a zaranga se torna viática, doentinha, riscada a operações de tirar panos do estômago, cefaleias, vértigos, diabetes, cólicas, borborigmos, tumores do tamanho de míscaros, TACs e tiques, fisioterapias do Juá e endoscopias do SuperPop, raça doentinha (da cabeça mormente, por mente menor). “Haja saúde!” – despede-se a catatua, caminho do comboio, consolada de moscatel.
É uma cena portuguesa, claro, e de grande extensão representativa do que somos à chuva.
No mostrador de vidro do estabelecimento, fulguram a sardinha frita, a posta de bacalhau dourada em farinha, o filete de pescada em humilde lingote e a orelheira porcina embalsamada de vinagre e salsa. Um barril plástico de mostarda entorna a lentidão de uma gota. Nisto, entra a jeitosa peitosa da ourivesaria. De esquina anca equina, calça muito vermelha e bota aguda mata-baratas-nos-cantos, telemobiliza em voz alta. Toma, por desfastio, um descafeinado. É das que esticam o mindinho. Cabeleira de apresentadora-têvê, unhaca lacrada a tinta e o armário das ventas intoxicado a pó-de-arroz.
Em vão perora o Fradinho das Chagas de Seiscentos santidades portáteis e moralidades de segunda-edição: o catolicismo está todo na doençazinha. Sim, minha senhora, haja saúde, sobretudo da nacional, da do sistema.
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