© Sandra Bernardo, 8 de Março de 2010
II
O coração – dizem-nos.
Como se fosse mais do que um músculo habitado
por pouco secretos demónios.
O coração – casa preta na noite do corpo.
O coração – cabeça de cansado cavalo cego.
O coração – hortaliça cabotina.
Bússola partida num deserto de bares fechados.
Todas as outras pessoas são barcos estrangeiros para o coração.
III
Essa mansidão feita de cores.
Nenhuma papelaria vende as tintas desse olhar.
A luz abre um mar de laranjeiras.
A luz assina com o meu nome
as sombras com que molho a cama.
Gostamos tanto de mulheres que
as mulheres nem precisam de gostar de nós.
O rio é o tempo o sono é a morte o homem é a árvore.
O homem quieto na tarde do cavalo.
Uma poça de luz branca: a mulher.
A mulher é o rio a mulher é o sono a mulher não é o homem.
IV
Tudo cai do altar do dia:
um olhar lento como azeite que aceite as oliveiras da alma
a história do homem sentado na tarde de comboios
o vento de Peniche
uma toalha de água por sobre a mesa da terra
oliveiras povoadas de cavalos
o cavalo comedor de caracóis
o cavalo comedor de gotas de água
cavalos pastando na eternidade
as paredes daquela casa de que vos falei
o silêncio dela põe uma pele de pêssego nas coisas
um odor de creolina
recordações como apeadeiros
vagos rostos rápidos entrevistos contra um fundo de pinhal
lances de chuva
cidadãos estrangeiros
safiras voadoras
uma mulher deitada
uma alegria desordenada
uma pulsação de rosas de Inverno
frutas maduras: as mãos
um gesto de junco de junho:
tudo cai alto do dia.
V
As bocas desatam a arder.
Isto de noite.
Eu não, mas o meu corpo já esteve em ti
dentro de água sem o resto do corpo.
Um dia, a minha vida será uma sombra numa frase alheia.
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