O Senhor não me Faltará
Caramulo, manhã de 7 de Setembro de 2007
1
Relicário da apaziguada emoção
esta luz na frescura matinal
olha-me nos olhos tal o retrato
seu encostado aos livros de pintura.
É muito bonito olhar um morto
que nos olha nos olhos à luz
da manhã viva.
Deve ser porque o amor continua
em casa num retrato
e à luz da manhã
na rua.
2
Sigo vendo a lápis as rosas.
Quem em menino vê o Pai desenhar
não mais outra natureza há-de
esboçar.
3
Esta história de amor é das que não acabam bem
porque
esta história de amor é das que não acabam.
4
Pai
repare que continuo.
5
Pai
repare que continuo
a tratá-lo por
senhor.
6
Eu sei
sou tão sensível à luz
por ser
negativo.
7
Depois de nós
as árvores fazem
como antes.
8
Uma vez na minha vida
entre Elvas e Coimbra
parei numa praça solar de Évora.
Vi o senhor em todos os homens.
Vi o senhor de novo coxeando
como as pombas
uma vez na minha vida.
9
Homens na noite tenho visto
aumentando a noite derredor
como súbitos fósforos acesos.
Vejo o senhor na manhã.
10
Beijo o senhor na manhã.
11
Já se me musgam as fontes da cabeça.
Cabelo nasce-me do imo dos ouvidos.
Suspiro já solfejos assobiados.
Só não sei desenhar rosas como o senhor.
De resto
estou pronto.
12
Acendo o carvão e esqueço-me das sardinhas
como o senhor
fico a olhar o lume.
13
Tive de
de novo
nascer longe
quando o senhor
se foi embora
para longe.
14
Vivo o andamento do meu amor
como vive o remador
em barco e água.
15
Lego aos meus leitores
o outono vitalício do legado
do senhor.
Faço assim:
na orla de um lago entre árvores
toco a pele da água com a água
dos meus olhos.
Dos meus olhos
então
de novo
o olhar do senhor.
Ele
o senhor
é quem olha
os leitores.
Não já eu.
16
O meu Pai é o senhor.
17
O senhor é o meu Pai.
Nada me faltará.
18
O senhor pintou
em azulejo a tinta de baixo-fogo
o D. Fuas Roupinho e o veado suspenso
o S. Jorge e o dragão assassinado
a Sãozinha da Abrigada e as rosas virginais
o Padre Américo e as crianças sacristas
o S. José e o Filho do Outro
o Simón Bolívar e o labirinto emigrante
a Santa Teresa de cabeça enegrecida
o S. Pedro e as chaves que não abrem
a sua irmã Maria e a tuberculose das varinas
a Alexandrina de Balasar e os lírios paraplégicos
o Lenine olhando o senhor nos olhos
a Lígia pequenina na fonte de Antuzede
e a sua mulher olhando-nos nos olhos
como se a minha Mãe fosse o Lenine
ou
a Sãozinha da Abrigada com rosas virginais.
19
À tal orla do tal lago entre árvores tais
usa a água chegar em apaziguadas ondas.
É o trabalho do sal nos olhos.
Agora os meus.
20
Por não saber lapijar rosas
junto outonos numa caixa feita de
língua portuguesa.
21
A manhã não é como o senhor
porque termina.
Tenho de ir para casa
fazer o almoço
tenho sardinhas e lume
para acender.
1 comentário:
Belíssimo poema, Daniel! Gosto da imagem de um homem - ou vários - (pintor, poeta; pai, filho) distraído(s) das sardinhas e atento(s) ao lume.
Já o meu pai, esse, não perdia de vista as sardinhas; eu dele tenho esse cuidado burguês, mas também amo o fogo.
Abraço!
JJC
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