Oeuvre de Vladimir Kush
Pombal, Café Ripa, noite de 10 (I) e Restaurante Ti São, manhã de 11 (II) de Março de 2010
I
Somos ainda os jogadores em campo, os actores em palco, estrelas apeadas do breve céu da infância, somos.
O nosso império foi cercado: farmacêuticos, cobradores, poetas, jeovás, veterinários, erotómanos, canalizadores – não nos largam.
(Aquele homem é de olhos azuis, ele azula o jornal que folheia, esquecido na mesa o quartilho de água mineral.)
(Ele é de olhos azuis, mas escrevo-os a verde.)
Perseguimos uma arte epigráfica, julgo que todos nós o fazemos.
Olho as minhas mãos encantadamente.
A chávena que usei é muito bonita.
Está pousada como um acontecimento branco na mesa de madeira castanha.
Vivemos a preto-e-branco entre cores que nos lamentam a surdez óptica.
Celebro a vossa graça triste, irmã da minha.
Tive um tio chamado Arménio, era a bondade feita pessoa, uma vez, na Figueira da Foz, deu-me uma caixa de línguas-de-gato de chocolate, um single do fadista Tristão da Silva Júnior e levou-me ao circo, agora ele continua morto e eu tenho pena da bondade dele, da graça triste dele.
Só nunca tive uma quinta em África como a Karen B.
Às vezes dou por mim a pensar como se fosse outra pessoa.
Gosto de árvores porque elas sobem, nós deitamo-nos.
É bom quando nos telefonam para saber de nós.
Conheço pessoas muito pobres, mas as pobrezas divergem, nem todas são de dinheiro.
Conheço pessoas muito pobres, mas as pobrezas divergem, nem todas são de dinheiro.
Totalmente eidético, aquele mendigo de barba branca a quem o meu Pai comprava calendários religiosos, eles conversavam na oficina de pintura do meu Velho, eu assistia em silêncio, era extraordinária a brancura daquelas barbas, eu queria que ele tivesse uma casa ali perto, o meu Pai comprava-lhe os calendários às escondidas da minha Mãe, não porque a minha Velhota fosse má, mas ela era quem fazia a nossa casa funcionar como as outras: o pão na mesa, a renda no senhorio, televisão e telefone fomos dos primeiros da rua a tê-los, o telefone também era branco.
Penso que afinal já não irei a Florença.
Descobri uma rádio holandesa na Rede, ponho os auscultadores, encerro os olhos e ouço a disciplinada loucura dos Barrocos.
Eu não sei música que chegue.
Sou de superstições inofensivas: a poesia é a mais recorrente delas, mas também me sinto benzido de ter vindo ao mundo num país marítimo, coitados dos Suíços.
Viver é uma fera delicadeza.
Sinto-vos dessoutro lado do meu rosto.
Há pessoas que tomam químicos para não estar tão vivas dentro delas mesmas.
O meu Pai e aquele homem tão branco na oficina, eu pousado no fio da conversa deles como uma ave no fio telefónico.
A minha pobreza é uma estratégia para a morte não dar nada por mim.
Este poema acontece à minha frente como uma estrada atravessada pela raposa.
Este poema acontece à minha frente como uma estrada atravessada pela raposa.
Quando as mulheres adormecem depois do amor, os homens deveriam guardá-las como cães gratos.
Pensar que se pensa – é como chorar à chuva.
Em Folhadosa, na Serra da Estrela, há uma festa comunitária em que as pessoas trocam comida.
Gosto de ir a Coimbra ver as putas comendo bolos-de-bacalhau nas tabernas, entre empregados da Câmara e doutores alcoolizados com muita fineza de maneiras.
Às vezes, todos encoiramos o nosso bocado.
A estas horas, a minha Mãe já deve estar deitada, sozinha há tantos anos na cama.
Outras vezes, gostaria de ser aquele homem que escreve com duas bandeiras para os aviões lerem o que se passa em terra.
A gente quer sempre ser além da gente.
Mas quando levanto a cabeça, é outra vez noite, a minha Mãe já dorme, sumida já no bosque a raposa.
II
A Ti São da casa-de-pasto que leva o nome dela canta fados de Lisboa enquanto trabalha na cozinha. Canta bem. É em Pombal, cidadezinha da União Europeia. O Sol pinta as ruas com uma paleta de laranjeiras e mulheres maduras. Expedientes económicos movem os carros. Um homem de mãos deformadas alimenta-se ao balcão. É um trabalhador. Não alto, largo, com essa pujança dos operários pobres que movem o mundo. Além, vejo passando o Tó-Zé Aguiar, um dos melhores músicos que já conheci em pessoa. Bom rapaz, casado há uma data de anos com a Ana Cabral. Sim, o mundo existe, o mundo resiste. E os produtos adquiridos não podem ser devolvidos. José da Silva Henriques é armazenista de vinhos, diz aquele calendário. Armazém e residência daquele Zé-das-Pingas em Pernelhas, Leiria. Também armazena na Marinha Grande. A Policlínica de Pombal (Lda.) recorda-nos que é proibida a venda de tabaco a menores. A idade, em caso de necessidade derivada da descúnfia, haverá de ser comprovada por qualquer documento identificativo com fotografia. Posso entrar aqui porque sigo os ditames do art.º 30º do Decreto-Lei nº 57/2002, de 11 de Março, a saber: manifesto a intenção de utilizar os serviços prestados, não me recuso a cumprir as normas de funcionamento privativas do estabelecimento e não penetro nas áreas de acesso vedado.
Ai ai ai ai
Olha o cheiro que a rosa deu
Ai ai ai ai
Vem à janela
Donzela
Sou eu
– canta a Ti São.
A beleza disto: uma voz de cozinha, as laranjeiras coroando a manhã de diademas, execução de todo o tipo de trabalhos com motosserra. Felicidade fina das oratórias do mundo, sua cinefilia: primeiro plano do empregado da Câmara arrostando o contentor-de-rodas sobre fundo de carrinha de abastecimento de produtos de limpeza, o repuxo espermático da água pública, o pescoço daquela senhora velado a torniquete azul de cachecol.
Meus velados olhos, meu destino viático, viário, diário, aviário.
Crispação mandibular: a(b)cesso de nervos.
Telefonemas picotando o éter sideral, roda do mundo, admirável mundo velho, retrato do artista quando jovem vulcão.
2 comentários:
Vou-me deitar hoje com uma iluminação nova:
"Este poema acontece à minha frente como uma estrada atravessada pela raposa."
A universalidade da poesia (com)prova-se nesta absoluta identificação leitora com o enunciado. Uma vezes raposa, outras estrada - é "isso".
Já nem é Parabéns o que te digo, pá: é Obrigado.
Abraço!
JJC
Isto é uma arte canhota para gente dextra. Mas ainda não escrevi nem meio verso que valha a sombra sequer da amizade que nos tem(p)os.
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