09/09/2009

A NOITE EM BREVE ou CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS (uma portugalidade delével) - 20

Coimbra Antiga, Nora no Choupal




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Caramulo, tarde de 5 de Setembro de 2007

Ontem e hoje, dois dias ao mesmo tempo exaustivos e exaustores. Fiz-me à estrada, fui a Antuzede buscar o resto da minha biblioteca. Recebi a preciosa ajuda do meu irmão Fernando (que hoje, 5 de Setembro, completa sozinho 53 anos de vida; digo sozinho porque ele foi gémeo, outrora; ainda o é, aliás, de uma maneira dele que só ele sabe).

Milhares de títulos esperam povoar em ordem as estantes novas, que são insuficientes. Tenho muita coisa boa, assim como, enfim, acumulei muita porcariazinha, grâce Dieu: uma biblioteca é uma vida. É um cansaço delicioso e humaníssimo, recompor em casa própria a acumulação de uma vida. Lá estava a minha Maria Alberta Meneres d’O Poeta Faz-se aos 10 Anos. E o Caldwell numa ponta, em cima, mais o Updike na outra, em baixo. A senhora Yourcenar. O Gogol. O Kawabata. O Pasolini entant qu’écrivain. Osvaldo Soriano, falecido não há muito. Messieurs Voltaire, Lautréamont, Gide et Barthes. O grande (enorme) Freeling. Shakespeare ? Sim. Gil Vicente e Bernardo Santareno ? Sim, sim. Shepard, Pinter e Lope de Veja? Trissim. Pulsa, viva, a leda tristeza de Camões. José Rodrigues Miguéis voltou da América, no mesmo voo de Jorge de Sena. Há Lodge, Hamsun e Nerval. Há Eugene O’ Neill. Há Wodehouse e Lovecraft. Há Walter de la Mare e O. Henry. Há Joaquim Paço d’Arcos e Al Berto. Há muito Herberto. Em caixotes não subidos a estantes, vou descendo merdices volumétricas que a minha vida, em tempos, quis conhecer – e agora já não reconhece.

Fora do âmbito geológico da prosa narrativa e da poética, a outros nomes faço de agradecido anfitrião. O historiador Duby (grande escritor-escritor). O pedagogo Althusser (o que enlouqueceu e matou a mulher sem saber como nem porquê). O singular Ariès. O senhor Valéry. O senhor Boorstin. O doutor Damásio. O senhor Teófilo. O senhor Julião Quintinha. O senhor Mattoso. Dom Unamuno.

Daqui a duas horas, noutro vector, vou participar do programa da minha senhora. Anuncia-se-me uma hora (21-22h00) de rádio em formato de entrevista. Tem a ver com a afamada Rampa do Caramulo (em moderno, Caramulo MotorFestival). É trabalho. Retornaremos depois a casa, onde os livros que esperam ordem e onde uma sopa hei-de pôr a cocção: um pequeno tijolo de carne de vaca (com gordura), cebola, nabo, cenoura, feijão, couve e azeite. Sal à medida do lingual, conformes as papilas do senhor reitor. Servido o prato, picar cebola crua e espichar um traço de azeite não cozido. Pão. Noite, depois.

Lembrei-me hoje, durante tudo, disto tão triste: este Verão (que corre ainda), não tomei qualquer banho de mar. Não nadei nas ondas, não me derreti ao Sol, não me descalcei na areia, não senti o apito benignamente temeroso dos senhores banheiros que vigiam, por fastio, os mergulhos das crianças e dos proboscídeos. Não tenho férias (nem ofício) há não sei quantas vidas. Deve ser bom sinal, só que eu não interpreto sinais – dou-os à interpretação.

Sobra-me a beleza. Digo: a do mundo. Estou sempre à beira de um enfarte de tílias. Cardiovascula-me sempre a rapidez dos castanheiros ao vento. É-me sempre renal um cálculo de pedras: ao monte, na serra, prateando-se de Lua para acinte sexual de lobos extintos e de raposas quase isso. Habito instâncias e circunstâncias de perigosa formosura: estes montes, estes arvoredos, estes pingos de cal a que chamam casas ainda não percebi porquê. Vivo correrias aéreas, sentado na pastelaria. Tenho em casa muitos fascículos da colecção Jacto. Deito-me na cama e ando de cavalo? Não: já não sou o aríete deslumbrador de torreões femininos. Deito-me na cama e vou à Noruega. Durmo entre gelos que Jack London estabeleceu na estante que ainda lhe não atribuí. Deito-me no sossego triste, suave e civilizado de todo o corpo que se cansa de cansar-se, libertando sinapses incompletas que os sonhos gambiarram como a palimpsestos de feira popular.

Sobra-me a beleza. A mesma hora consumi muitas vezes, em muitos anos muito diferentes, por lares de repouso folheados a mármore e a datonomástica. Sim: não vou a terra que não vá a mortos. Uma excepção se me imprime (grave, gravosa): quando, há coisa de três anos, fui a Santarém dar duas rosas, regressei por Rio Maior. Passei perto do sítio onde suponho durma Ruy Belo. Era late in the evening, porém, não dava para parar, ir, ver, ler, sentir: S. João da Ribeira, Rui de Moura Belo (1933-1978). Estou perdoado, para já: não fiz ainda quarenta e cinco anos. (E, algures entre 1979-82, lancei sozinho, eu também, a bola de basquete à tabela: e também contra a campainha; não era no Liceu de Santarém, era no da Senhora Dona Maria, em Coimbra.)

1 comentário:

Manuel da Mata disse...

Depois ajudas-me a arrumar a minha. Os livros, esses, estão cá todos em casa, mas distribuídos por dois pisos.
E a propósito da Youcenar: "Hoje levantei-me cedo, porque vou a casa do meu nédico H... que está de volta, após uma longa estada na Ásia...." Penso que mais palavra menos palavra é assim que começa "Mémoires d' Adrien".
Não gosto de ter os livros arrumados em duas filas por prateleira. Gosto de lhes ver as lombadas.
Ah, bem agarrada aquele de fazeres regressar o Miguéis com o Sena.
Belo texto.

Canzoada Assaltante