08/09/2009

A NOITE EM BREVE ou CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS (uma portugalidade delével) - 19

19

Caramulo, manhã e tarde de 3 de Setembro de 2007

Agosto foi um mês chilro. A poluição mundial matou as estações do ano. Setembro arrancou em ademanes de Grande Estio – ou grande estilo. A luz é tanta, que a manhã surge como uma catedral sem telhado, devolvendo folhas de ouro ao céu, onde nuvens e aviões parecem deflagrações de cal.

Ma femme reviendra ce matin de Viseu. Precisamos de ir ao sal e ao vinagre. Há chouriço e fruta em casa, mas vinagre e sal acabaram-se-nos anteontem. Falaremos durante. Depois, à tarde, enviarei um Licor para Paris, oferta a Lídia Martinez, uma excelente amiga nova que me chegou do que vou herdando do editor e amigo José Antunes Ribeiro. São coisas boas para a mais recente segunda-feira da História.

Iniciei o boletim de hoje com uma referência grata a Setembro – e no entanto já anseio pelo Inverno, o verdadeiro. Quando o frio voltar, voltarei ao coração monástico de Rilke e às andanças de Holmes e de Maigret: releituras que a invernia nunca deixa de me presentear com. Um mapa de alegrias perdoáveis, enfim. E também: bolsas respiratórias no frio algodoado. Em casa, em silêncio, assisto à condição florestal das estantes. Sou feliz por quase nada.

Longe daqui, o mar fala barcos. Homens maciços tripulam a dura poesia dessa eternidade. Vejo daqui esses longes tripulados. Antigamente, a minha Mãe olhava o mar com o espanto tranquilo de quem gerou tal coisa. As mulheres e o mar esperam-se desde sempre – e correspondem-se. Nós, homens, embarcamos na incompreensão de tanto amor – de tanta perda. Alzheimeriamos as nossas vidas navegantes. Por isso nos soam as ondas a papel amarfanhando-se.

Estou na manhã com este idioma antigo. Trabalho a lentidão do sangue: circuito-fechado. Fujo só pela memória, por sua mentirosa verdade afectiva. Gosto de saber que António Sérgio nasceu precisamente no dia em que morreu Ivan Turguenev (diz-mo o Jornal de Notícias). Coisas que amor saber para nada, para nada e para quase ninguém.

No parque da vila, corredores babujam sombras coruscadas a ouro em flechas de pó voador. Ninguém transita – e no entanto todos passam(os). Por essas ruas vegetais, ambularam outrora os tuberculosos, meses e anos e décadas e manhãs. A terra bebeu-os, deles resquiciando não mais que vaporosas gazes sem lembrança do que foram em vida.

Soeiro Pereira Gomes e John Steinbeck tomaram-me cedo. Esteiros é um livro inesquecível mas esquecido – eu sei por que e por causa de quem. Do norte-americano de Salinas recordo muita coisa, entre que avulta um pequeno-almoço de toucinho e café magnificamente exposto numa das histórias de The Long Valley, salvo erro. Estas coisas solitárias e mundiais: ter lido, desejar essa primeira vez de volta sem ter partido.

Há muito (me) parti, porém. Ainda hoje, no escuro de algum teatro, me apercebo da impossibilidade do regresso. Na luz cénica, corpos e palavras mumificam a angústia essencial dos vivos. Eu estou vivo no escuro. Começo logo de manhã.

Parti muito. Devo nunca ter chegado. Estas são as minhas palavras? Sim, mas menos isso do que (finalmente) uma verdade: estas são as palavras a que pertenço. A estas palavras (a este idioma) entreguei a minha vida e as minhas mãos: três bandejas que adejam de folha na luz negra.

Adejam, sim. Concedo-me percepções que só a loucura da língua esclarece. Perante uma mulher, por exemplo, digo-me: lírio. Não é um lírio, esta branca magrinha de cinquenta anos que pede um biscoito de canela e um chá verde? Um lírio é: e eu entreguei a minha vida a esta floricultura que não toca, mas sente, seus (de)lírios.

Há outras coisas.

Muitos anos me convenci não amar bem. Amo bem. Algumas pessoas, todas as cores, determinados animais – e a Língua Portuguesa. Só isso me conta. No mês passado, tarde do dia 18, um homem chamado Fernando Jorge embaciou-me a vista relatando-me de seu Pai. Há cerca de dois anos, a mulher morrera. O Pai, aprisionado pelo Doutor Alzheimer, telefonava ao filho às sete da manhã.

– Não sei da tua Mãe. Procurei-a por toda a casa.

Era numa piscina de água do mar da Figueira da Foz. Em torno de nós, os filhos dele borboleteavam como papel-de-seda deixado ao vento. O céu abobodava a cerâmica azul de uma doçura quase insuportável. Perante a praia, a Torre do Relógio marcava pontos, perto de bandeiras vivas. Gente dentro de água flutuava silêncios de rã absorta. E eu ouvia aquelas palavras portuguesas de um destino mil vezes português:

– Não sei da tua Mãe. Procurei-a por toda a casa.

Ao fim do dia, jantámos com as crianças dele num sítio preservado pelo frio de Agosto. Tiraram fotografias. Depois, foi cada um à sua vida: a seu Doutor A.

Vejo escurecidos corsos de homens em terras a que não irei senão pela escrita: gandulos escoceses vivendo e bebendo do desemprego em bares sitiados por divorciadas que dão umas baldas à procura do baldado amor; silhuetas pé-de-arroz em água vietnamita, bicudos elmos de palha, curvados como flores terminais; guardas-nocturnos guardando a noite, aguardando a manhã, por condomínios povoados de médicos e traficantes ciganos, um cãozito inofensivo aos pés; autómatos japoneses tirando a gente fotografias automáticas; gaibéus ribatejando vietnames de Portugal nos salazar’anos; Rilke no Castelo de Duíno.

Mosaicos de 30x20 forram as paredes da pastelaria até altura de ombro sentado. Uma rapariga mamalhuda como uma vaca de pé toma descafeinado por chávena vermelha. Os assassínios da noite no Porto são celebrados na TV com uma gula apetitosa. E lá fora a luz desvela a noite interior dos objectos.

Manhã muito cedo, recordo, acordei ao cabo de um porto de sonhos inatracáveis. Levantei âncora, lavei-me, comi fruta, vi o correio (alguma coisa), parti a tomar café e jornais na sala dos anjos terminais. Eles chegaram pouco depois, cerimoniais sempre e sempre cerimoniosos, cada um a sua mesa e em sua cadeira, separados e sós como recados de família. Tomaram café, fumaram. Aquele escreve num caderno de capas pretas como eu. Aquele pediu-me o cinzeiro. Aquele balbuciou coerências só dela. Aquele pestanejou em morse. Eu assisti.

Chega agora a tarde: pano branco atirado à flanela respiratória; país versilibrista de horas que não rimam senão consigo mesmas; estendal de corvos azuis numa manta de ferro. Chego agora à tarde: levo comigo canivetes idiossincráticos, que eu diria, até, aristocráticos, não fora a minha irremediável vocação de pobreza. São palavrinhas justapostas, não reflexivas mas reflectoras: espelhinhos-de-mão, esmaltes dados a água numa luz que é pedra, que é gente e que é antes.

2 comentários:

António disse...

Gostei muito.
Obrigado por mais este pedaço de tempo bem passado.

Daniel Abrunheiro disse...

Eu é que agradeço, António.

Canzoada Assaltante