06/09/2009

Antes do Mar


© Joel Meyerowitz

Truro, 1977




Souto, Casa, amanhecer de domingo, 6 de Setembro de 2009



Às vezes os vivos deixam em paz a vida e não pensam, vêem a luz acontecer como se tal milagre tivesse perdão, sei desta vez o que digo.

Bancas de fruta marginam de cor as estradas de cinza, quem vai ao mar deixa em terra toda a dúvida e, se qualquer esperança, toda também.

Na noite que se acaba, a farmácia de serviço serve de farol verde, os derradeiros do turno da bebida recolhem às casotas, dão lugar aos primeiros do turno do pão, do leite, do peixe, da hortaliça, dos jornais.

O tempo arde como um gás.

Então, encharcadas de perfume como passarões tropicais, as senhoras saem à rua e ambulam, maquinais manequins, areados arlequins, sarrafados serafins. Trazem os bicos lacrados a escarlate como malaguetas, sapatos de boa pelica, artelhos duros como nós de oliveira, carteirinhas preciosas repletas de pequenos-nadas.

Já a casa das lotarias estende sortes numeradas de resto-zero e demais noves-fora.

O senhor Ilídio descarrega caixas de laranja e sacos de batata com a ajuda do filho, que tem um relógio partido dentro da cabeça, sobre o lado esquerdo.

Uma criança, julgando-se perdida, chora no jardim público, pensa na vida – por isso chora.

De que lado estarei? Sei desta vez o que digo – mas não sei de que lado. É dia de ir ver o mar, de trazer para casa um pouco de areia tirada a tanto azul, a tanto ouro roubada. A caminho (antecipo já), a delícia humilde de uma chávena de café entre os bicos-de-lacre senhoris que devoram mil-folhas e mil empadas de periquito, um cigarro chupado ao ar fresco, a atenção ao espreguiçar das laranjeiras.

Guardo o resto do papel para ver essa luz acontecer, sabendo-a porém milagre.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante