14/09/2009

AVES COMETENDO O ANIL E DEMAIS VIAS-FÉRREAS - 2

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Bairro da Agorreta, Pombal, depois Pombal, manhã e tarde de 14 de Setembro de 2009

(fotografia também, manhã)

A montra do café de fumadores tem afixada uma folha de papel com um desenho que representa um caracol. Acima do animal gráfico, a indicação verbal Há. Poderia ser Ceci N’Est Pas Un Escargot. Mas não, é Há.

Bela manhã parda. Não fria e ainda não quente. Junto a uma grade pintada de azul-forte, uma mulher de blusa branca com um telemóvel cor-de-madrepérola agarrado ao hemisfério esquerdo da cara. Além, um rosto bonito com chávena de café à boca. Pena a adulteração a tinta (madeixas) do cromo capilar natural. Mas boa blusa verde, boa calça branca, boas e finas sandálias de ouro enredando os pés morenos.

Consciência da entrada dos anos no meu funcionamento erógeno. Digo: mais e mais remota a vaga luxúria da juventude, mais e mais rarefeito o apelo erótico das senhoras do mundo. Em lugar dessa inquietação já antiga, a moderna fruição estética delas. Parecem-me, as senhoras do mundo, artefactos de cerâmica, algumas. Corpos bonitos tocados de uma graça só já vegetal a meus olhos, animal já não. Não desgosto de todo desta tranquilidade mirone de escritorzito.

O meu peso na Terra. As contas na cabeça. A fluidez das mãos (como limos na água corrente). O perfume a aves assadas nas lojas de pronto-a-comer. A inauguração do ano lectivo. A cabeleira larga e profund’alta destes plátanos. A passagem das viaturas com a firma escrita nos flancos da chapa. Este tempo que tem(p)os para ser – e de estar.

Aquele senhor também mandou pintar o cabelo, coitado. Parece um fósforo. É um velho pintado. Em vez da prata natural, aquela ferrugem de lata de conserva. Colete de pescador ou repórter. Sapatinho barato. Pantalões de anacrónica ganga: um engatatão de nenhuma, coitado. Lá vai ele à vida dele, ilusório moço por dentro e fósforo por fora.

Leitura do jornal do dia por quase uma hora. Um idiota pago no televisor babuja insolências geriátricas cheiinhas de boa-vontade-feliz-natal-em-setembro. Minha vida a que pertenço. Uma romã: relojoaria de rubis. APOIA O BTT – apela um dorsal de camisola em corpo de operário (bolo de bacalhau, taça de tinto de cooperativa).

Sou este gajo, a minha intenção é escrever tudo. (Sim, conheço o malogro: so what?) Compreendi (apre(e)ndi, portanto) algumas coisas. O nascimento e a defunção. A passagem até da passagem. A rarefacção do oxigénio nas montanhas emocionais. O milagre portátil da poesia. A pintura móvel dos lances do mundo: a ponte que demonstra o rio (e por igual a necessidade de atravessar), a loja de óptica, os últimos moicanos da agricultura (carroças puxadas a burro em plena fila de semáforos), um amigo muito doente no hospital, outro amigo muito doente mas em casa (à espera, claro, ele sabe), um carro preto silencioso como um sedativo nas costas da alma, um relógio de parede marca Delta com o retrato de Camões (Celui-ci N’Est Pas Camões) feito a grãos tic de café tac, o verde franco-escocês de umas telhas lembradas talvez de Chesterton (G. K.), um laboratório de prótese dentária que fabrica sorrisos alternativos à podridão das cremalheiras, o combate da consciência a si mesma para que o sofrimento não emane alguma fragrância mortal, um avô & um neto em parceria indestrutível pela rua, o avô de saco plástico, o menino de chupeta verde na boca de morango, adiante na minha vida o outonecer das coisas, em casa as fotografias olhando de lá do Tempo o cá da Vida, se for a solidão o mais companheiro barco, ali uma escola viva por dentro como uma colmeia, Há Caracol, uma velhota de sapatos de papel-de-jornal que enlouqueceu em 1968 por causa de o filho ter sido rebentado em Angola por uma mina anti-filhos, a contemporaneidade dor/amor/indiferença/memória/esperança/pintura/ponte, a rapariga que sonha ser cantora pimba em pavilhões-atlânticos de associação local cujas retretes cheiram a merda de tractor, a pança maravilhosa daquele homem, carvoeiro e madeireiro de ofício, a imparabilidade na minha cabeça de tantas letras, tantos riscos, tanto mundo completamente silábico.

Perto do meio-dia, a rosa solar rompe o cartão nublado.

Antigamente íamos ver o mar e o mar via-nos. Agora não somos vistos por ele, que nos não perdoa termo-nos tornado isto: adultos sem inocência.

Na zona da vi(d)a-rápida, vendo passar os carros levadores da vida que passa. Um cão branco, veterano, de lombo ligeiramente arruivado. O sossego das vivendas na banda d’além. Com um pouco de sol (acontece-me muito isto) olho o azul d’além e desejo o mar. A realidade é toda, porém, estes camiões carregados de blocos de cimento, estas árvores de fruto empoeiradas como largos de praça depois do padre e da filarmónica e do Verão, estes papelitos perdidos pelo chão, os grandes placards das oficin’autos. Olha: a manhã acaba-se, saciada de si mesma. Um gânglio anti-infeccioso no estojo da mandíbula, lado esquerdo. Uma rapariga já descriada de camisola em amarelo-forte. Sapatas brancas com incrustações de cobre. Coração nalgal ainda firme, corrido duplamente a sul pela gelha das barrigas das coxas. Lá vai ela à vida dela. Ela é do nosso tempo: contemporânea desta merda toda. Fotografei aspectos da cidade. Dei umas voltas pelo silêncio povoado de gente de gesso, coitada. A precisão vital da dignidade. O comércio de vitualhas, ferragens, nastros, nardos, narcejas, bandejas, molduras, braceletes, lenha, carvão, óculos. Tanto ouro, tanta prata, tanto papel-de-jornal. Eu queria o mar. Um pouco de tempo ao pé do mar. Passa porém uma carrinha de reparações eléctricas com um busto de boné e óculos ao volante. Se não for pelo mar, quero deixar escrita alguma marca. Pinceladas quase enxutas marcam quatro copas de talvez amieiros. Não sei se no horizonte, se na cabeça – dá o mesmo em sílabas. Rumor de louças e facas e mulheres em antros húmidos: vão nascer os almoços do mundo. Eu vou ali e depois eu ainda não sei muito, algumas coisas sim.

Relíquias vivas, as palavras de cada dia. Também: povoadoras nocturnas: mariposas, lunações apre(e)ndidas ao Sol. As nossas vidas, outros tantos papéis-de-seda(-de-jornal-a-verdade-é-que-de-jornal). Flores da eternidade sucinta de uma manhã, toda a vida. Que as glândulas deste Avô o suportem um par de anos mais para dar a conhecer-se ao Neto pequenito, chupeta verde na boca de morango. Inocência ainda ante o mar (uma sílaba: mar).

Um olhar onde possível com frescura.

Nunca desistir: nem dos versos, nem dos bustos, nem dos cães dourados (ruivos, porém) que passam vivos a manhã, Ceci N’Est Pas Le Matin Non Plus.

3 comentários:

Anónimo disse...

Afinal,a beleza existe.

Daniel Abrunheiro disse...

Ando à procura dela como um cão.

António disse...

Há manhãs assim, singularmente bonitas e repletas e sabores...

Canzoada Assaltante