I. COIMBRA, UM FIM DE MANHÃ
Coimbra, fim da manhã de 4 de Setembro de 2009
Uma zona arborizada de prédios bons, deitadores de vistas para bandas do rio, que passo ligeiro do coração. Reconheço alguns detalhes de há três décadas – e mais que tanto, até. Por aqui adquiri gramáticas e peripatetismo soliloquaz. Saí daqui há vinte e três anos. Tinha vinte e dois, quando saí. Ainda não voltei. Talvez só volte já cadáver, como dizem os bombeiros que chegaram tarde ao local do desastre. Não sei. Nunca se sabe. Esta manhã é bonita: é uma manhã conimbricense, a luz é familiar, as árvores e os cães são tuteáveis, cor-e-salteado. As mulheres fumam. Há quem leia jornais. Vi uma pessoa com um livro. Há vinte e três anos que não via disto. Num café antigo perto do novo Estádio, Bolton e Liverpool vão-se empatando a zero (28m51s de jogo). Fui com toda a sinceridade de todas as terras onde já vivi. A verdade é que sou daqui, porém. Não há que enganar(-me). Uma pessoa ama de cor-e-salteado quando e quanto ama. Por mais anos que a queimem, uma pessoa ama de cor-e-salteado. Conheço isto tudo, sobretudo o que descubro. A manhã acaba em poder do sol. A cara da manhã toda ao mesmo tempo: a luz é uníssona, ubíqua, multívoca, toda simultânea. As árvores traem sem maldade a aldeia-em-nós. Senhorinhas utilitárias metem combustível nos carrinhos senhorinhos. O dono de O Nosso Café está estabelecido desde 1964. Eu nasci em 1964, estou portanto estabelecido há tanto tempo quanto ele. Somos pois, por assim dizer, colegas. Colegas são aquelas senhoras – eu sei. Bolton, 1 - Liverpool, 1 – aos 40 minutos. Faço e desfaço horas com o meu distinto perfil de cavalheiro. Olha: um Opel Manta. Aos anos que não via um Opel Manta. Tivemos um vizinho que tinha um Opel Manta. O senhor do Nosso é Senhor Manuel. Pessoas de cabelo que deveio branco. Mulheres bonitas e envernizadas. Setembro também bonito. Lojas de brinquedos, de livros, de trapos. Pus dois euros no euromilhões. Nunca se sabe. Passa longe um homem que conheço. Chama-se David. Recordo nomes. Os nomes ficam, as pessoas passam. Estou aqui e recordo um casamento em Lorvão. Fui com a minha Irmã Xelinha e com a minha também Irmã Gracita. Levaram-me, quero dizer, eu era pequeno como nunca mais deixei de ser, apesar dos centímetros entretanto. Lembro-me das taças de pudim cor-de-rosa. Lembro-me de uma bateria. Lembro-me de um rapaz maior do que eu que vestia fato completo, o que me maravilhou porque o fazia grande como os grandes. Um homem diz
– Incompetências que a gente vê –
e sai porta fora. Converso com o senhor Manuel acerca dos Taborda Nogueira e dos Moura, meus professores antigos e bons do liceal tempo. Estou em Coimbra, o Sol renasce a minha cidade. Um casal: ela de ombros morenos presidindo a um vestido roxo muito (in)justo ao corpo. Ele de camisa branca listrada a castanho-pardal. Lá vão, coitaditos. O futuro ainda mora aqui um tempo mais. Está por aqui perto sepultado Vitorino Nemésio. Há cartazes grandes de propaganda autárquica e da outra, de Lisboa. Também gosto de Lisboa mas menos, por causa do patriotismo regional. Nunca fui a Paris, nem já quero saber: é verde, não presta. No Centro Paroquial de S. José, aqui tão perto, vimos e ouvimos um guitarrista chamado Roberto Olabarrieta, acho que é assim que se escreve. Pass(ad)os surdos no coração, como gemidos sentidos em casa pequena. Operários em folga de almoço, pintores da construção-dita-civil. A luz terrena e alta: atiradora de pontes, deflagradora de árvores. Bolton, 2 - Liverpool, 2: bom jogo andante. Exerço a minha boca, língua adentro. Aquela senhora chama-se Isabel – eu sei. Berlim, Milão, Capri, Odessa – nada disto. Tudo isto: Calhabé, Ginjal, Casa Branca, Olivais, Rocha Nova. Tempo de me acertar sem terrores nem euforias. Deus te pague, que eu estou um bocado à rasca. De momento. Digo: de momento. Onde era o cinema do Girassolum, agora é IURD: Centro de Convenções, chamam-lhe os gajos, papões evangelistas com sotaque de casa-de-alterne. Fui ver. Tive pena. No dia 17 de Maio de 1985, fui lá ver um filme com o Robert De Niro e a Meryl Streep. Também lá vi um filme com um cão que dava peidos, o que me ri deliciadamente escandalizado com o raça do cão e os peidos do cão, chamava-se Hotel New Hampshire, o filme, o cão não me lembro como se chamava, era baseado num livro do John Irving, agora o desgraçado do Cristo é lá ladrado em brasilês. NATO, Afeganistão, Magistrados do Ministério Freeport Público, equipa de futebol do Freamunde toda de quarentena por causa da porca da alegada gripe-dos-A-porcos, essa lend(e)a do piolho farmacêutico à escala global. Tempo. Pássaros calafetam frinchas do ar. O ar é um grande barco azul de costado amarelo. A solidão permite a fuga ao imo sentimento de vergonha. Que o menino era para ser isto, era para ser aquilo. Jogatana, viver. Ali fechou uma fábrica. Céus de Coimbra, homens de pêra.
– Amanhã mesmo –
diz uma mulher de chapéu. Aos anos (vinte e três) que eu não via uma mulher de chapéu. Amanhã, o mesmo – digo eu, que há quanto-tanto não via um chapéu com uma mulher por baixo, a sul da sombra. Os pintores pagam as bicas e as meias-macieiras e vão-se embora. Uma carrinha representante de batatas-fritas-lays. O meu tempo era pala-pala. O século XXI. Isto não ser, por exemplo, 1959. Ou 1964. Descida de receitas nos casinos. Dei dois euros ao euromilhões. Uma volta mental pela chuva, pelo frio que fazia. O corpo sensível ao lume como uma febra pensativa ao carvão. Toques laterais no peito, nos braços, na língua e em Coimbra.
II. POMBAL, A MEIO DA TARDE
Pombal, tarde de 4 de Setembro de 2009
Lentidão dos olhos acalmados de sol, a meio da tarde. Vê-se daqui a linha-do-comboio, parte da Charneca, um pano amplo de céu. Tudo em ordem. Fadiga do foro físico. Casas paradas, carros também. Um rapaz conhecido, como é que se chama, acho que é Rui, lá vai ele de pasta na mão como o boneco da Regisconta, camisa atormentada de calor, o cabelo porém correcto, curto, limpo. Já por aqui andei um milhão ou dois de vezes. Não tem importância, não conta, não faz mal nem bem. Estou acordado. Falei com a minha Irmã ao telefone. Disse-me coisas. Os anos vencem. O Sol é uma maravilha alta. As pessoas também são maravilhas, só não altas todas. Algumas são altas dentro: são fundas. Vêm todas nos olhos. Estendem as mãos: são raras. Estou fatigado. Sei línguas. Conheço paragens: carros, casas. Estou a pensar um livro. Ando aqui parado. Fui a Coimbra de manhã. Vim-me embora. Amanhã, diz.
III. DUAS SENHORAS A MEIO DA TARDE
Pombal, tarde de 4 de Setembro de 2009
A Senhora Newhaven não é correspondente da Senhora Luzia, mas entender-se-iam ao chá (a Senhora Luzia diria e iria por café) sem problemas. As mulheres entendem que a vida não é uma coisa que se atire fora agora para ver se é possível ir buscá-la daqui a bocado. As mulheres e as senhoras. Eu tenho um grande respeito por mulheres que são senhoras. Tenho. Como sei escrever, escuso de pensar. Newhaven,
2 comentários:
gosto mesmo muito destas coisas terra-a-terra que falam das terras q'amamos.
O tempo passa despercebido. Quando passamos por onde já vivemos fazem-se contas e aparecem memórias.
Vi alguns jogos e bebi alguns 50$00de cerveja no nosso café,...era meio-litro. O tempo passa.
Gostei destas lembraduras!
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