21/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 495 a 498

© DA.


495

Domingo,
20 de Junho de 2021

    Na madrugada gritada pelas gaivotas, os pescadores recolhem um cadáver humano dentre a rede plena de pescado vivo. É uma hora cinzenta. A morte do homem decorre de uma trama relacionada com uma seita religiosa. Não foi Deus a causá-la, foi o dinheiro, que é outra espécie de deus. A polícia demora menos de um mês a juntar as peças & a levar o caso a julgamento. A seita é desmembrada, a normalidade retoma as rédeas. O morto não deixou família. É um item do arquivo municipal, pó de pó na vala-comum. As coisas seguiram o seu trâmite normal – e que se chama esquecimento (ou, para quem fez alguns estudos, olvido).

496

    Ante mim, retratos sucessivos de um homem nascido menos de quatro meses antes do meu Pai. Sucessivos por um a um – e sucessivos no tempo contado & descontado a anos rápidos: criança, rapaz, mancebo, homem-feito, maduro, velho.
    É figura que me interessa. Há densidade no pensamento que deixou dito & escrito – mormente nesta última forma. Era dotado, este homem. Algum ascetismo (não digo monástico, digo não-mundanismo) arvorou em modo-de-vida. À sua maneira, venceu.
    Há alguns já que ando para reler volumes seus. Estreei-o na juventude, aí pelos meus vintes. Sinto esta minha idade de agora (ou de momento) apropriada a tal releitura. Pode ainda ser que sim. É de Vergílio Ferreira que falo, não de André Malraux.

497

    Um fio de terra extremado por duas árvores a oriente & uma solitária a ocidente. Emoldura-o uma profusão de verdes retintos. Costumo desejar esse caminho, que lobrigo da minha altaneira marquise. Qualquer dia, talvez. Talvez qualquer dia o cumpra pedestremente, como aliás tenho cumprido a vida. Como aliás toda a gente, julgo, tem cumprido a vida. O caminho é que naturalmente difere. Ainda bem: aquele é meu. E a marquise também.

498

Dois homens trabalhando a terra de manhã ao entardenoitecer.
O trabalho progride ao ritmo adequado, apurado por séculos.
É uma região áspera, domável mas trabalhosa, úbere mas ímpia.
Pode ser contada, pode ser cantada – se o não for, não lhe importa.

O povoado é calçado a pedra própria daquele chão.
As ruas são vielas cuja antiguidade resiste às manhãs.
Na eira, uma criança, uma velha, uma lata com pregos.
Ontem, morreu uma senhora; hoje, morreu um senhor.

A feira é mensal, faz-se na vila, dista dez km.
A defunta, Maria Arcanjo; o finado, Francisco Nelson.
A feira tem importância, fá-la brilhar a utilidade.
Também os falecidos a tiveram, há que deixá-los ir,

deixá-los ser terra trabalhável.

4 comentários:

cid simoes disse...

E aqui fiquei algum tempo a reler o poema e a pensar, às vezes também penso, como é que este homem me obriga a vir aqui todos os dias com tanto que tenho para fazer na horta, garimpar poemas, alimentar blogs, estar atento ao movimento dos povos em luta, ler e…

Daniel Abrunheiro disse...

Pois eu, meu excelente Amigo, tenho um dilema semelhante, muito semelhante.
Cada dia, todo o dia, todos os dias, penso assim: «Ainda hoje não escrevi nada que o Cid leia.» Vai daí, escrevo. É mesmo assim: amigo empata amigo. ;)
Saúde, parceiro.
DA

cid simoes disse...

http://voarforadaasa.blogspot.com/

Daniel Abrunheiro disse...

Muito grato, Amigo, muito grato pela partilha e pela divulgação.
DA

Canzoada Assaltante