30/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 299 - IV


299 - IV

Terça-feira,
27 de Abril de 2021

    Segunda quinta-feira de Junho, dia 12, ano 1975 d.C.
    Lá nos vamos de novo a ela.
    (No então próximo sábado, é o 17.º aniversário da morte do mui grande & mui amado Vasco Santana.)
  Coimbra & demais topónimos-vivos do mundo comiam o pão que havia, respiravam o ar que não faltava, cumpriam a condenação a viver pelo delito pouco simples de haver nascido. Desastres rodoviários abundavam. Manifestações cívicas, havia-as também. Lucian’Alcoviteira era viva, tinha 45 anos, nem no Totobola gastava um tostão. Deixemos Etelvino ir descendo a Escada do Gato, vai decerto ao Dragão da Cremilde Larga, mas se calhar fica logo ali no Pinto – tinto é cheio, mesmo que seja branco.
    Atendamos panos de ouro que o Sol estenda pelo chão.
    Jardins privados bebem extaticamente quanta tanta luz.
    Não, ainda não aniquilámos certo cinzentismo retro’de’gradante.
    Sim, ainda a polícia se farda de cinzento.
    Calma, ainda não somos uma Jugoslávia.
    Austeridade & saneamento & alienação & expropriação & nacionalização são vocábulos recorrentes.
    Fátima pouco muge, por enquanto.
    Colarinhos grandes, gola-alta, calças à boca-de-sino, tacões à Deep Purple.
    O bigode da I República é agora a barba-com-suíças à Che-Guevara.
    O inventor-amador senhor Agnelo Gonçalves David, de Almeirim, quer aproveitar a energia das ondas do mar.
    E o custo-de-vida? E a gasolina mais cara do mundo?
    Tomai o lombo de porco a 149$80/kg!
    Manifs contra a carestia mas também mocas em Rio Maior.
    O Etelvino já mamou meia-litrada & duas pataniscas-de-bacalhau.
    Já trouxeram o jornal à senhora-dona Luciana.
    Interessam-lhe a necrologia & os cinemas.
    Não a condeneis por não querer saber da Reform’Agrária.
    O caso da batata-para-semente? É desalfandegá-la, senhores!
    A Luciana recebe sopeirinhas beirãs, educa-as, dá-lhes 20% de cada coito.
    É uma empregadora, afinal – gente-agente-económico, enfim.
    Sovietizar as ruas ou manter informado o Carlucci?
    Cooperativas & Comissões Liquidatárias dos ex-Grémios de Lavoura
ou
    Associação Nacional dos Armazenistas Importadores e Exportadores de Frutos e Produtos Hortícolas?
      O intermediário encarece a batata, clama-se. 
    A Cooperativa de Vagos anda chateada por causa da batata-de-semente désirée (a de qualidade-vermelha, por cromática ironia).
    A Secretaria de Estado do Abastecimento e Preços deseja um 1976 melhor.
    Do Vasco Gonçalves ao Pinheiro de Azevedo, é convulso o passo, tem tosse o pé.
    A História do Pão valida as Migalhas.
    Atiradas aos pombos ou negadas aos desvalidos, elas contam.
    Cada amanhecer consagra no indivíduo alguma duração.
    A terra não ascende ao céu: fixam-na as árvores.
    Imitámos as árvores erigindo edifícios.
    Tão capazes somos da catedral quão do bairro-de-lata.
    Equívoca capacidade, essa nossa.
    O Cosmos é para lá de grande, não oferece medida.
    A vidinha é a vidinha: em 1975 como amanhã, se lá chegarmos.
    Quem nunca viu passando um Etelvino?
    Quem nunca o viu lustrando calcantes?
    Quem jamais soube de uma Luciana?
    Quem jamais a vilipendiou invejando-a?
    Também a solidão do entendimento inebria, não só a benemérita aguardente dos mais clandestinos alambiques. Em um anónimo primeiro-andar de um prédio suburbano, no subúrbio da vida, mais restauro do que instauro. Sei coisas. Sei agora coisas. 1975 é no século passado. E, como Vós, estou/estamos ora nos últimos século & milénio passíveis de conter-nos – de contentar-nos, não.
    Entrementes, passa o eléctrico para Santo António dos Olivais. Segue nele um leitor de David Mourão-Ferreira. chama-se Bersânio, estranha graça de gozão padrinho. Mas o que lê de momento é um exemplar do mesmo diário que, no Santa Cruz, Luciana passou já a um solícito cavalheiro que a reconhece mas a ninguém o revela, por dela cliente mais que uma vez já. Trepidando sobre carris, Bersânio vai lendo, pensando devagar em coisas que nunca nos dirá, retomando a leitura, no Hospital da Universidade acabou por morrer um rapaz de 20 anos chamado Sebastião, tinha sido colhido por um ligeiro em Pombal, acabou por não resistir. Mais fica a saber o senhor Bersânio, que aprecia Mourão-Ferreira & é ele próprio autografador de poemas (versando o Mondego, a Lua, a Brevidade-da-Vida, a Utopia-do-Amor-Feliz) que: Álvaro Cunhal no Pavilhão dos Olivais na noite do próximo dia 21; esta noite mesma, que é de folguedo em honra do bondoso Santo António, uma comissão de moradores da freguesia de Almedina leva a cabo no Pátio dos Castilhos o primeiro de uma série de arraiais em quadra de santos populares, a receita de tais “fogueiras” para investir na “restauração da escola primária que funciona em péssimas condições”; e, de elevado valor cívico, o que anteontem, feriado nacional do 10 de Junho, fizeram estudantes e professores: nada menos que “a abertura de uma estrada”. Contexto: por apelo governamental, o Dia de Camões foi transformado este ano em jornada de trabalho a favor da economia nacional. Infelizmente, não foi muito assinalável a adesão a tal apelo. Mesmo assim, em diversas empresas apareceram para trabalhar os seus profissionais: Auto-Industrial, Fábrica de Recauchutagem Lusa, Fábrica Santix (Coimbra) e, na Figueira da Foz, os trabalhadores da Fábrica Ministral. Em Soure, “magistrados e funcionários asseguraram o funcionamento” do Tribunal Judicial, fazendo-o em voluntariado.
    Chegado a casa, ali tão perto do recinto da tradicional Feira do Espírito Santo, Bersânio recorta para o álbum o seguinte trecho:
    “O contributo para a jornada que assume maior expressão revolucionária foi o que à mesma emprestaram umas duas centenas de estudantes e professores universitários que, arregaçando as mangas, pagaram, no alargamento de uma estrada em Póvoa da Lousã, o seu espontâneo imposto de trabalho braçal, imposto este que bem poderia tornar-se extensivo a todos os grupos sedentários, cujos contactos com o povo rural se traduziria em recíproca e saudável osmose de conhecimentos através das paredes pouco permeáveis que têm separado e oposto, por falta de compreensão e convívio, os trabalhadores intelectuais e mecânicos.”

29/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 299 - III

© DA.


299 - III

    Procedo a uma pausa quanto às vãs (venais também, talvez) revivescências expostas in I & II deste 299. Estou aqui a pensar. Condenado ao presente, isso sim. Isto não é a Friedrichstrasse, é outro sítio. Parece não ter morrido qualquer pessoa, em Portugal & nas últimas 24 horas, por causa da pandemia covídica. É boa-nova, claro. O meu Gato, alheio a rácios & a previsões, dorme esparramadamente em manta macia.
    De momento, combato certo melancolia cuja pertinácia me arranha há um terceto de dias com suas noites. É mosca interna. Sobraço ar. Não será hoje que me vou à Normandia a ver as praias do grande desembarque daqueloutro Junho, madrugada de 6, ano 1944. A verdade é que me não mexo nesse sentido – nem em qualquer outro que não tenha número de página.
    Tal como as infectas metrópoles de por-esse-mund’-afora, a tristura dispõe de vielas perigosas. A serenidade não tem receita fácil. É rara & preciosa como, digamos, o lápis-lazúli.
    Digo assim: Estou em obras.
    De reparação? De bot’-abaixo-&-faz-de-novo? De novidade?
    Um Bernardino Vicêncio houve ali na Tenente Valadim.
    Usou anos sem conta roupa cinzenta, desse tom que entristece sozinho.
    Julgo que era empregado-de-escritório num armazém de ferragens.
    Não tenho modo de apurar se deveras o era ou não.
    Sei que era damista de primeira-água.
    Frequentava os tabuleiros da sobreloja d’A Brasileira.
    (A Brasileira da conimbricense Ferreira Borges, não uma das de Pessoa.)
    Costumava vê-lo passar à tardinha, de cinzento sempre, talvez para sempre.
    Fui-me depois por outras rotinas, nunca mais o vi.
    É possível que seja vivo ainda, talvez algum lar-terminal o vá mumificando.
    Também pode ser terra mineral há anos, Olivais ou Conchada.
    Penso nele para não pensar em diversos assuntos meus.
    É uma simples – & táctica – nolição.

    Como frescos murais, certos sonhos cavernam-me a noite.
    Impressiona-me a lógica implacável das gravuras móveis.
    Esqueço-as despertando, pelo que me obrigo a fazer versos.
    Não preciso de me forçar muito, sei (ou hei) o como-dizer.
    Prefiro os versos aos desenhos oníricos, quase sempre medíocres animações.
    Na verdade, libero & delibero – ou crio; ou recrio; ou plasticino.

    Em diversa dimensão, imagens extrínsecas mostram-se poderosas.
    A capital do III Reich vista do céu em Junho de 1945.
    Ossadas de novo profanadas em valas-comuns.
    A Buenos Aires com Borges vivo andarilhando-a.
    O panorama muntheano de San Michele.
    O salão de O Baile de Ettore Scola.

    Onírico, lírico, verídico – tudo em mescla se consuma.
    Desenganai-Vos: muitos veneram ’inda a sepultura de Alois & Klara H.
    Quem não sente uma nostalgia inexplicável ante o mar & o lume?
    Ou explicável: se de um & outro somos feitos & viemos ab ovo.
    E dos Originais cá veio o rancho todo; o procaz Dillinger, a bela Nefertiti,
    o malogrado Scott, a amásia Maintenon, o vil Rasputin, a safada Safo.

    Objectos? Também. Definitivamente sim, também objectos.
    O canhenho de marroquim vermelho de Kees Popinga.
    O frasco-de-bolso de Scott Fitzgerald.
    A cafeteira azul de um baptizado em 1917.
    A cabaia de Eça.
    O chapéu-de-coco de Magritte.

    Um serão próspero, viveu-o Maurício Filholena (sim, o famigerado envenenador do Bairro Albuquerque) quando aceitou um convite para concerto-seguido-de-ceia. Foi Ademar Marílio, que então regia o Coral de Santo Eustáquio, a convidá-lo. Gastrónomo delicado & melómano arguto, Filholena não hesitou em aceitar a gentileza. O duplo programa incluía cantatas de Bach & amêijoas-à-Bulhão-Pato. Que seguramente se saiba, M.F. não havia ainda, à data de tal bródio melogastronómico, envenenado mulher alguma. De facto, a primeira envenenada era ainda juvenil à data de Bach-com-Bulhão. Quando o hediondo Filholena a vitimou, Eulália Vilhena já dobrara a trintena. Isto é consabido, é consensual, é consentâneo. Quanto aos bastidores dos horrendos actos, é bem mais a parra do que a uva. Cinco mulheres morreram de envenenamento por arsénico às mãos de Maurício F.: a sobredita E.V., Cíntia Musgo, Dália Valnegro, Orquídea Braz & Penélope Pastor. Todas louras-naturais, de olhos claros todas, todas com mais de trinta anos. Diferiam as suas origens: Eulália era natural de Matosinhos; Cíntia nascera na Índia (então) Portuguesa; Dália vira a luz pela vez-prima no Faial; Orquídea era flor desse jardim chamado Sintra; só Penélope era nativa de Coimbra (de Celas, mais precisamente). Maurício Filholena morreu de um tipo de justiça a que se usa chamar – lá saberá o Demo porquê – “poética”: espancado com tubos arrancados à canalização exposta dos chuveiros da penitenciária. Já postumamente, foi empalado com um desses tubos. Até hoje, sabe-se-mas-não-se-sabe quem o justiçou. Ou, vamos lá, o poetizou.

    Antes de retomar alguns fios (lassos mas laços também) de Junho de 1975, encaro como posso & sei a finitarde de Segunda-feira-26-4-2021. Escrevi encaro pensando suporto. Liguei uma das máquinas que nesta casa sempre configuram alguma companhia. Figuras desfilam, eléctricas, diferidas, feridas algumas também. Colunas de soldados trepidam praças emolduradas de populaça frenética. De perfil, um rapaz de bigode incipiente dá aparência de famélico. Outro tipo de colunas: desempregados em fila-por-sopa. Flúi uma espécie de torpor multitudinário, agora. De frenesi, zero. Lá voltaremos.
    Reciclam metal em massa, estilhaçam pedra.
    A consciência não pára nem apara o horror a tempo.
    E no entanto o horror naturaliza-se, chama-nos filho ou irmão.
    Sobem a pulso os mais videirinhos.
    Serão imolados os cordatos cordeiros mais ordeiros.
    E Deus em todas as bocas: como uma cárie inobturável.



28/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 299 - II


299 - II

Segunda-feira,
26 de Abril de 2021

    Dizia-Vos pois:
    Quinta-feira-12-de-Junho-de-1975.
    O Zé & a Rosa casam-se a 12 de Junho – mas de 1994.
    No próximo sábado, 16-4-75, há a Final da Taça de Portugal. Este ano, não é no domingo nem à luz da tarde. É às 21h30m. E não é no Jamor mas no Estádio José de Alvalade. Os finalistas são o Boavista Futebol Clube & o Sport Lisboa e Benfica. Senha de camarote, 80$00; bancada central, 100$00; bancada lateral, 70$00; superior, 42$50; geral, 27$50. Sempre quero ver quem levará o caneco, se os axadrezados, se os meus “papoilas saltitantes”. Em dois dias saberei a triste nova: BFC-SLB 2-1. Os golos: Mané aos 15’ & João Alves aos 17’ para os nortenhos; Jordão aos 60’ para mim. O Etelvino Engraxador fartou-se de rir à pala dos benfiquistas. Ele era do Belenenses, no geral, e do União de Coimbra em muito particular.
    A quem pode interessar este desarrazoado? De encontrar resposta a tal não cuido. Um jogo-de-bola na capital do ex-Império, um engraxador que em quatro anos cairá morto em uma couraça vetusta da velha Coimbra, Madame Luciana, alcoviteira afinal séria – tudo elementos mais do que vocacionados ao olvido. Não para mim, todavia, não por mim.
    Por mim, alguma coisa durável merece a luz.
    Se visitas alguém teu, se logras chegar-lhe à fala.
    Se te interessam as datas, os ciclos, as tantas entropias.
    Hitler toma o poder em 1933.
    Passados 28 anos, erguem em Berlin o Muro.
    Passados 28 anos, mandam o Muro ao chão.
    Preferir-me-ias talvez mais cuidador de coisas deveras sérias.
    Não me esquivo a teu tiro: terás decerto razão – mas para de facto teres a certeza da tua total razoabilidade, precisas de dizê-lo a alguém que não sou, que me esqueci de ser, que tudo aliás fiz – e faço – por não ser. Por isso:
    Na Quinta-feira-12-de-Junho-de-1975, Luciana desjejua no Santa Cruz. Não lhe diz respeito – nem ao de leve a interessaria – que logo à noite, lá longe na Cova da Piedade, o Clube Desportivo local faça um gesto benemérito, o de receber no Campo Silva Nunes o Atlético Clube de Portugal para um jogo amigável em benefício da família do malogrado António Esmoriz, jogador que morreu em um desastre de viação. Pela lei natural da proximidade, a senhor cuida com mais interesse do que falam na mesa ao lado da sua. Um acidente de viação também, mortal também – mas muito mais próximo do que a remota Cova da Piedade. Logo a seguir à Estação Velha, rumo à Geria, deu-se o despiste de um automóvel, aventa-se que por velocidade excessiva. Tal como acontecera ao grande escritor Albert Camus quinze anos antes, o carro desfez-se contra uma árvore da berma. Morreu logo, ali mesmo, um dos cinco tripulantes do veículo: um professor primário de 44 anos de idade & residente na Rua Antero de Quental da nossa Lusa Atenas. Deixou viúva. Já no Hospital da Universidade, acabaram falecendo mais dois dos restantes quatro passageiros envolvidos em tal sinistro: uma senhora professora liceal, de apenas 24 anos & solteira, e um estudante universitário, de 25. A jovem docente residia na Avenida Bissaya Barreto . O jovem discente, na Ladeira do Seminário. Fora de perigo, dois feridos: um engenheiro técnico de 26 anos, morador da Praça Machado de Assis; e uma professora primária, de 35, residindo esta na Rua António de Vasconcelos.

27/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 299 - I


299 - I

Domingo,
25 de Abril de 2021

    Há elementos novos. Não. Corrijo já: em minha posse, novos – mas antigos de quase cinquent’anos. Nada de outro mundo. Tudo & todos deste, aliás.
    Uma senhora de róseas unhas, lúnulas claras, profissionalmente registada na brigada-de-costumes como associada a lupanares ou bordéis ou prostíbulos ou alcouces. Era de atitude desafiante, procaz até. Tinha casa particular na Elísio de Moura: tugúrio à rica, murado, tipo cidadela. Na primeira metade de Junho de 1975, certa manhã de quinta-feira, tomou café-com-leite & bolo-de-arroz no Café Santa Cruz. Disseram-lhe aí que um Etelvino, engraxador de ofício com banca, ou banco, junto aos cartazes dos cinemas sobre os urinóis, tinha feito doze no Totobola, daí ganhando treze contos, cento e oitenta e nove escudos & setenta centavos. Esta senhora, que era de sua graça Luciana, veio a morrer num albergue ou hospício ou asilo ou depósito gerido por freiras italianas, não sei se para bandas do Sabugal, se por além Celorico da Beira. À data da morte, tinha noventa anos feitos, também, em Junho. O tal Etelvino morreu em 1979, foi de repente e na Couraça dos Apóstolos, levou a mão ao peito & já-foste.
    Na mesma metade do mesmo Junho do mesmo 1975, aquilo a que à falta de mais capaz vocábulo chamamos realidade – funcionava para uns tantos & deixava de funcionar para outros quantos. Ainda se nascia & já se morria. Pouco falta para meio-século ter ardido desde então, mas tal não obsta a que as novidades, por mais poeirentas ou embolorecidas, continuem a fazer latejar-me a pulsão plumitiva.
    Um Datsun 1300 verde, com estofos castanhos, roubado.
    Um Datsun 1200 4 Portas, alaranjado, estofos pretos, roubado.
    Tinha-se por “Grado – Saboroso – Nutritivo” o amendoim de origem israelita.
    Aquilo de o Etelvino Engraxador ter feito 13 contos com doze resultados acertados no 1X2 – foi boato da canalha coimbrinha. No todo nacional, é verdade que 163 concorrentes só falharam um palpite, auferindo a tal quantia. Mais felizardos foram os seis totalistas desse concurso (o n.º 40) do Totobola, havendo embolsado 358 contos, 322 escudos & 30 centavos cada mano. Opíparo, importante, suculento, esplêndido, magnificente, lauto, gordo, chorudo, rendoso, munificente prémio, naquele outrora tão conturbado do Processo-Revolucionário-em-Curso + Verão-Quente.
    Digamo-lo assim: tenho, de nascido, 11-anos-2-meses-4-dias. É a segunda quinta-feira de Junho/1975. O mundo parece mais vivo: há uma espécie de entusiasmo oratório entre os adultos, algo como uma facunda (fecunda, nem sempre) euforia. Liberdade & Reacção são palavras-de-ordem em frequente desordem. Mas faz-se meia-noite, já entra em convenção a gloriosa Segunda-Feira-26-de-Abril-de-2021. E o sono pede licença para tomar conta da minha corporação, perdoando-lhe etelvinos & lucianas & datsuns roubados. Por ora.



 

26/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 298

© Joel Meyerowitz


298

Domingo,
25 de Abril de 2021

    À luz crua, o mar obriga a semicerrar as pálpebras. A areia queima deliciosamente, apetece escavá-la, revirá-la até encontrar a húmida. Ainda não olho as raparigas, interessa-me jogar à bola até o banho se volver a melhor recompensa da vida. Calço 35, quase 36, espero chegar depressa ao 36 porque isso obriga a sapatilhas novas. Há outra coisa não menos deliciosa: imaginar que sei os nomes de toda a gente na praia. Não os verdadeiros, mas os que ela merece. O velho com cara de Cândido. O miúdo com sardas de Tomás. A menina de azul, Lua Maria. A Lídia Sol. O cabo-do-mar Venceslau como o ciclista. A mulher-dos-bolos, Adozinda. O grandalhão louro, Jack Morgan. O home’zito que está sempre a ler, Professor Baltazar. E eu, Billy.
    Pode que isto não passe de uma forma de futuro invertido. Uma recordação projectada antes de a memória ser accionada.
    É uma hipótese interessante. Já não calço menos de 42. Já olhei raparigas. Ainda atribuo nomenclaturas em barda. Quantos não estão de facto & deveras em um futuro-anterior? Naquela praia mesma, quantos? E já agora: e onde, que foi, aquela praia será?



25/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 295 a 297

Daniel dos Santos Abrunheiro

10 de Abril de 1917

24 de Abril de 1994


295

Sábado,
24 de Abril de 2021

    O senhor-meu-Pai morreu hoje, 24 de Abril, há 27 anos. Foi & é & será como a Lei manda. Sobrevivo-lhe por enquanto – também é da Lei. Falta-me sentir em presença a bondade dele. Haverá talvez quem considere um despudor o facto de eu abrir o livro a tal dor. Não importa: as pessoas são livres até de usar quanta estupidez lhes der na veneta.
    Sepultámo-lo no exacto 20.º aniversário da Revolução-dos-Cravos. Ominosa coincidência.
    O derradeiro semestre de vida, passou-o meu Pai em arrastado sofrimento: qualquer coisa se desligara na rede cerebral – mas com dor permanente. A impotência de acudir-lhe exauriu-nos a todos. Valeu a força intransigente da senhora-minha-Mãe, que viúva se demorou viva mais dezassete anos quase.
    Cabe-me envelhecer, tornar-me um traste – para uns, de carácter; para todos, de anoso. Mal nenhum ou especial: de triste a traste, vai uma vogalzita trocada. Tenho os livros próprios & os alheios à mão-de-inseminar, por assim dizer. Ao contrário de alguma gente, os livros nunca me/nos falham: são, literalmente, a palavra-dada. A minha pena é não ter tempo para todos quantos me falta ler ainda. Escrever, vou escrevendo este – que mal não traz ao mundo, nem bem, nem diferença, não sei bem.
    Quando é em verso que me mostro prosaico, rio-me por & para dentro: que chorrilho de maluqueiras me acorre! Mal nenhum. O que é preciso é um gajo ir-se – a eles versos, ou coiso.

296

    Pelo menos nesta página, alguém aquece a sala enquanto alguém na cozinha ultima as provisões-de-boca. O ar já ronrona à face do fogão-de-sala. Em taças diferentes, espargos, azeitonas, nabiças, esparregado-de-favas. Na terrina, sopa-de-tomate. Na travessa, vitela-com-massa. O alguém da cozinha é Jerónimo, marido de Francisca, que precisa agora de lavar as mãos, estabelecido o fogo, crepitando já a mescla de carvão, oliveira, pinho, desgrenhada caruma para acendalha. Harmonia. Pelo menos nesta página, escrevo, ou lêdes Vós, o que falta.

297

    Acompanho discretamente danças, andanças & desandanças de personagens que no curso da existência tenho de algum modo contactado. Quase nunca pergunto. As mais vezes, contam-me. Esses dados entram-me na máquina, são processados, às vezes surgem transfigurados em alguma das tretas que escrevo, outras vezes esfarrapam-se na estranheza dos sonhos.
    Com os anos, aprendi a relativizar com maior grau de firmeza. Claro que nem a tudo – algumas vulnerabilidades são-me tão próprias quanto os olhos com que nasci & os óculos que, já meio-velho, me comprei. Elas, vulnerabilidades (ou defeitos; ou fraquezas; ou vícios; ou descaminhos; ou o raio que as parta), integram-me. Não há que mentir.
    Para vencer alguns instantes da finitarde, revi imagens que me são caras: Rilke & Cortázar foram dois rostos que procurei & encontrei. Entendei-me, por favor: afinal, hoje é (mais) um aniversário do passamento de meu Pai. Nunca é um dia fácil. Repõe-se-me em cena (sempre) o momento em que o meu Amigo Henrique dos Santos me telefonou, foi por ele que soube, sei bem que se esperava mas não poderia nunca deixar de ser um choque.
    Ouvi a pura alegria da Música a sério – a Valsa n.º 2 de Shostakovich, por mor exemplo. Uma pessoa faz o que pode, como pode & quanto pode – quando, para sempre, se vê filha só de si mesma.



24/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 290 a 294 (conclusão dos grafunhos de 5.ª-F.ª, 22-4-2021)


290

    O derradeiro verso da entrada 289 pode – e, se calhar, até deve – causar confusa perplexidade (ou perplexa confusão) aos meus mais fiéis circunstantes. Fácil de esclarecer: a Brotéria é (ou era, sei lá/cá) revista católica. E de mui razoável qualidade, aliás. Ora, no Vol. LVI, Fasc. 2, de Fevereiro de 1953, pp. 155-169, um senhor A. de Magalhães articulou uma prosódia intitulada “Na morte de Teixeira de Pascoaes”. Li a coisa. Reitero o penúltimo verso da 289. Só isso. Mais não digo, nem falta.

291

A minha Cidade é maiúscula: não por ser minha,
mas por ser de meus Pai & Mãe.
Eu venho-lhe(s) por arrasto, tal a capciosa (& daninha)
pesca, de que muitos versos hei dado também.

292

A pessoa nascitura foi engendrada por espermat’óvulo.
Culpa nenhuma tem de se por amor ou violação.
O Romano latiniza, o Grego lança o discóbolo.
O resto é só humano, é tudo à condição.

293

Última hora (gravada em áudio):
Conversa entre duas lápides, ali na Conchada:
– Ainda és palhaço para o geral gáudio?
– Também és gaja p’ra rir, bem ou mal enterrada?

294

Vi os Filhos & as Filhas dos meus Amigos.
Comovem-me como se meus Sobrinhos & Sobrinhas.
A Vida tem joios. A Morte? Nem trigos.
Depois, vêm Netos: & lindas Nètinhas.

Não vou ser americanamente europeu.
Não vou ser esperto fora de telefonemas.
Telefonei a um Irmão. Se era ou não eu?
Dependia da voz – ou então dos poemas.

PARNADA IDEMUNO - 287 a 289


287

Crianças assustadas, permeáveis a descompensações adultas.
Sabemos demasiado pouco de como resistem & r-existem.
A simplicidade parece ser assaz difícil, francamente.
Pedro Nuno, José Paulo, João Dezoito, Victor Salgado:
concertaram-se em quarteto-pop-rock, divertiram-se.
À face dos sessenta anos de idade, não vivem da música.
Pedro é protésico-dentário. José é mediador-de-seguros.
João é recipiente do rendimento-social-de-inserção.
Victor é senhorio de dois prédios urbanos com loja-rés-de-chão.
Não serão já crianças em pânico, se calhar mal o foram.

Digo: Antes querer do que crer. E até: Antes não-querer do que descrer.
Mostrai-me algo que hajais feito – deveras feito, deveras Vós.
Revisitemo-nos em frente, forward como dizem os aparelhos estranjos.
Cada pessoa com a matemática & a bondade que lhe sejam peculiares.
Escrevi matemática significando-a mesma mesmo - & bondade também, mesmo/a.
Ao telefone, não é tão acessível. Por carta-epístola, um pouco mais.
Luiz Seixas, Mário Cruzeiro, Helder Pacheco, Ângelo Forte:
concertaram-se em quarteto-de-cordas, depressa desconsertaram o grémio.
Estão mortos os quatro, tornaram-se irremediáveis:
Luiz em Campolide, Mário em Alenquer, Helder no Funchal, Ângelo em Rilhafoles.

Fui com António F. & João B., ao Parque de Santa Cruz.
Havia concerto rico naquela tarde de primícias de Julho.
O João fumou uma ganza, o António & eu bebemos absinto.
Quase nada recordo da música, é pena, ou talvez não.
O João já morreu, foi morrer longe, Glasgow é longe.
Depois daquela tarde na Sereia, fui a Peniche.
O António foi alhures, por lá tem ficado & estado, ao que sei.
Fui depois viver no Caramulo, onde escrevi este dístico:
O amor é cego.
A memória é o cão do cego.

Não fiquei lá muito tempo: nem no amor, nem no Caramulo.
Também já não era criança, era só mais-um-menos-um-resto-zero.
Conta o que durar alguma coisa: durar de duração & dureza.
Às vezes, o dourado brilha no ar pardo, reverbera a compreensão.
Até crianças felizes existem por vezes - & à vez.
Céu de Maio, sonoplasta, foi feliz na Amadora (ex-Porcalhota).
Virgínia Sameiro, nutricionista, foi feliz em Abrantes.
Doroteia de Lemos, acompanhant’escort, nunca foi feliz em lad’algum.
Amália Rodrigues foi maravilhosa – se feliz também, não sei.
Não se nasce sozinho, a mãe é lá precisa – morrer é outra história.

Veloz é a vida; lenta é a existência.
Se vísseis como adormeço, rir-Vos-íeis talvez.
À falta de materna placenta, imirjo em flanelas.
De pronto me iludo uterin’astronauta de novo.
Traspassa-me a transparência etérea total.
Navego as mais diáfanas trevas.
É um bosque sem papão.
O homem-do-saco morreu.
À mulher-dos-gatos saiu a lotaria.
Ride-Vos – mas assim me é, em teatro perto só de mim.

Través a pantalha figurada, figuradora & figurante da mente?
Ui!, quinhendras-milheiras nomeações: começa por Camões,
estendendo-se a Ariosto, Bocaccio, Dante, Eça, Filinto,
Gabo, Herculano, Italo, Joyce, Kafka,
Lorca, Marcel, Nerval, Osório, Pessoa,
Quental, Rodoreda, Sófocles, Tolstoi, Urbano-não-por-favor,
Woolf, Virgílio, Xenofonte, Yourcenar, Zé Daniel
(que é meu Irmão & também escreve).
Depois de Bach, escutei Pop Dell’Arte.
Crianças cerce envelhecidas, há-as sim por tod’ a parte.

288

    Augusto Gonçalves tinha um carro cor-de-laranja.
    Ernesto Lucas tinha um carro branco.
    Augusto Abreu saiu de cá, foi para a estranja.
    Dizem que o Maugham gaguejava & era manco.
    Dos nomes constantes das quatro primeiras linhas deste texto, só o terceiro é de pessoa viva ainda. Infelizmente, não assim os outros. O escritor inglês morreu velho – mas o primeiro Augusto & o Ernesto, cedo de mais. Dos quatro nomeados, só o britânico deixou livros. É uma figura-de-papel, por assim dizer. Os outros três, não: com todos troquei a mais pessoal conversação. Saúdo o quarteto, mas é dos do primo dístico que saudade hei.

289

Parece que as almas nascidas à luz-d’azeite,
agnósticas embora em praxis a vida toda,
temem no fim ao Diabo (q’ele se bem fôda!)
& pedem a Deus o cerúleo eterno deleite.

É propaganda.
É procissão do Santo-Te-Fôdas a passar com banda.

Requiescat-in-Pace, Guerra Junqueiro,
que bem os fodeste a todos por inteiro.
Descansa também, velho T. de Pascoaes:
que se lixe a Brotéria, já não sofres mais.

PARNADA IDEMUNO - 285 & 286


285

Quinta-feira,
22 de Abril de 2021

    O senhor Philippe Herreweghe rege o Collegium Vocale Gent. São três cantatas de Bach devidamente número-classificadas: BWV 127, BWV 138, BWV 161 – valendo cada BWV por Bach-Werke-Verzeichnis, naturalmente. Ganho a matina assimilando tal torrente sonora. Homens & mulheres sabendo muito bem o que fazem, o que receberam, o que se prestam a dar(-me/-nos). São 50’40’’ de puro deleite.
    Vai passando no (des)continuum uma multitudinária procissão: em ano a preto-e-branco, Coimbra processional a Rainha Santa Isabel. A monarca mantém Cidade & mocidade própria. Opas, círios, futricas, paisanos à paisana. Edifícios já então velhos como o olvido.
    A galeria, felizmente infinita, alinha muito mais: Eduardo Nery (1938-2013), Samuel Beckett (1906-1989), Abel Salazar (1889-1946), Fryderyk Franciszek Chopin (1810-1849), Abel Manta (1888-1982). Tudo gente inexorável – de firmada & afirmada obra, inexorável sim.
    Considero improvável alternativa matina. Está & é, esta, muito bem assim.

286

    Aqui perto, Montemor-o-Velho, fulano mata a tiro a mulher do irmão. A vítima já está na morgue. Histórias afins desta abundam no País, já nem falo do resto do mundo. O assassino está de momento em fuga. Vive-se pouco, mata-se muito, morre-se sempre.
    Ouvi o meu Bach, fui-me à açorda, fiz café, pousei como pássaro gordo em ramo fino. Uma pastilha de fluoxetina não desajuda, dizem que lubrifica sinapses & axónios & coiso.
    Em Montemor-o-Velho, entretanto, sofre-se porque o humano não cessa de recriar o desumano.


22/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 284

© DA.


284

Quarta-feira,
21 de Abril de 2021

    Aproveitei o dia.
    Resolvi até coisas fáceis.
    A jornada foi, meteorologicamente falando, a meu gosto: pluvial, trovejante até. Estive uma hora fora de casa – das onze & treze ao meio-dia & dezassete. Trouxe mais literatura para casa, estou mais rico.
    Cedi depois um pouco aos noticiários. A dado ponto, formulou-se-me uma ‘boca’
    O Chega e o Bloco de Esquerda são, ambos, formas de punheta – porque “os extremos tocam-se”.
    Pena máxima para o filho-da-puta do Caso Valentina. Espero que na prisão lhe desacertem o passo muitas vezes.
    Troquei de sítio duas peças de mobiliário. O novo arranjo é amável: ilude em conforto a brevidade da estadia – qualquer estadia, seja de quem for, seja onde for.



21/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 281 a 283

© HBO, Welcome to Utmark


281

Terça-feira,
20 de Abril de 2021

    Lôgo-ameno & lôgo-horrendo – só do factor-humano vêm a amenidade & o horror. O lôgo/lugar é em si indiferente à condição antropóide. Cria o humano o deleite & o deletério. Tudo isto está muito bem posto em As Pastagens do Céu, que Steinbeck compôs há muitos anos. Por conseguinte, não estou nem a inventar a roda nem a descobrir a pólvora – ou vice-versa, já nem sei.
    O que sei – é (d)a necessidade de fazer alguma coisa que, pelo menos, dê a ilusão de alguma durabilidade. Há quem se congregue com demais pessoas para concretizar tal. Há quem se meta sozinho a esse barulho. Sou destes últimos.

282

    Na entrada 258, referi-Vos determinada obra de José Joaquim Nunes. Volto a ela para copiar esta curiosidade:

    “O animal a que geralmente chamamos raposa, afora esta designação, tem, como se sabe, a de zorra e já teve a de golpelha, que corresponde à de vulpecula, que os Romanos lhe davam ; (…)”

283

Conversei hoje com alguém do meu sangue, amenamente isso foi.
Ia arrefecendo um pouco o entardenoitecer, refrigerante vento nos dava.
Em torno, uma família de gatos tomava a derradeira luz.
Perto, o senhor da leira prestava culto a sua horta nascente.

Quando de novo me vi a sós com meu nariz mesmo,
retomei a peregrinação verbal que há décadas me salva de mim.
Recordei eidos & quinteiros há muito improváveis.
A rádio falava da música nos filmes de Hitchcock.

Reordenei mantimentos frescos, planeei algum amanhã.
Papéis (não muitos) pedem-me arranjos sensatos, que aliás posso.
Entreteve-me ir sabendo de gente de um lugarejo filmado.
Alguma dela saiu-se bem – mas mui minoritariamente.

Rebanho de ovelhas tasquinhando o verde possível em encosta.
É ali duro o inverno, há que aprovisionar forragem forte.
Deixei-me adentrar pela noite, não me recolhi tarde.
Tenho a luz-cabeceira esclarecendo-me estas linhas.

Em sítios hostis à literatura-de-bons-sentimentos, vive-se também.
Ou existe-se: a crédito uns tantos, a prazo todos.
Mora-se por moratória, demora-se quanto se pode.
Não foi sobre isto que conversei hoje com alguém meu consanguíneo.

Mas de certa maneira até foi.


20/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 278 a 280


278

Segunda-feira,
19 de Abril de 2021

Mãe & filho numa área-de-serviço aberta 24/7.
Comeram alguma coisa, estão em viagem, descansam um pouco.
Chegarão pela alva à casa a que se dirigem.
É habitação com propriedade: olival, vinha, pomar, pecuária.
Parte da casa está habitável, a outra precisa de restauração.
A mãe já não tem marido, o filho já não tem pai.
Decidiram voltar à casa de origem, viver nela o resto.
Podem fazê-lo, venderam o apartamento na cidade.
O casal caseiro (toda a vida) espera-os para afinar o acordo.
Pode ser que a quinta dê para todos, pode ser que sim.

À face da hidroeléctrica, a hospedaria de índole familiar.
Familiar deveras: a sala-de-refeições, o louceiro velho, o velho aparador.
Talher de ar usado pelos dos retratos na parede, comida de factura avoenga.
Comemos ali um arroz-de-galo muito bom & muito barato.
Foi há muitos anos, ainda eu tinha família completa.
Era pela finiprimavera de um ano mais simples do que estes.
A barragem ainda funciona, duvido que idem a tal hospedaria.
É recordação algo melancólica, esta, como tantoutras minhas.
Dá, enfim, para confecção de uma décima versilivre.
Poderia dar, enfim, para bem pior produto, pior sem-saída.

Dinheiro. Dele se fala. É assunto ubíquo, mais ainda do que Deus.
Não é novidade, bem sei, mas julgo que tem vindo a piorar.
Tenho conseguido algum alheamento, não muito, não suficiente.
Existe-se mui condicionadamente, artificiosamente emaranhado.
Espectacularidade pirosa agrava a clareza, obsta à razão.
Por uma moeda de euro, comprei há dias um livreco velho.
Foi escrito por um franciscofrancófilo, se bem me entendeis.
Penso que é de 1943, interessa-me ler também o nocivo.
Aprende-se com a malevolência, nada duvido de tal.
Os maus livros também ensinam, por contraste embora.

Referem alguns (já poucos) certo rapaz que em vida logrou fama.
Alguma coisa o dito moço sofreu para conseguir algo de seu proveito.
Cruzou as décadas do século anterior a este que respiramos.
Diz-se ter sido ele a plantar em 1940 um carvalho viçoso ’inda.
Li certa ocasião um opúsculo que o denunciava como infame plagiador.
Tal, todavia, não impediu que eu siga lendo os livros do rapaz.
Em diversos apeadeiros da minha viagem o hei feito sem pressa.
Julgo que a primeira vez terá sido por volta de 1978.
Certo é ele ter visto & vivido & escrevisto & escrevivido muito mundo.
Morreu quando teve de ser – mas os livros dele por ’í andam ’inda.

Mesclam-se-me em libreto itinerários individuais com destinos colectivos.
A importância de uns & outros está no que usam & ousam ensinar.
Assim, António de Jesus Barracuda, marido & pai mal-amado:
& Wilhelm II, maneta teutónico ostracizado de luxo na Holanda.
A estadia africana de Barracuda em solo colonial-bélico-africano:
& as consequências do Armistício/Versalhes 1918/19.
Parece que o grande Poeta Ruy Belo nasceu no dia em que ardeu o Reichstag.
Aventam alguns que Cervantes & Shakespeare morreram no mesmo dia.
Faltavam onze meses para o nascimento da minha Mãe: o putsch de Munique.
Penso seriamente que as cerejas se entregavinham insidiosamente.

Filho & Mãe
etc.

279

    A caminho de onde brevemente lapijo estas linhas, vi uma jovem papoila rompendo. Era sinal de que a terra de que proveio não foi sujeita a agroquímicos invasivos. Agora onde estou, à face do céu que fenece, andorinhas arabescam, rapidíssimas, o derradeiro azul da jornada. São quanto me acrescenta, sacanitas: andorinhas & papoila, ignorados milagres que não rezam, não oram, não imploram, não mistificam, nem pagam IRS a fideput’algum.

280

    Obra-de-edificação, não faço – nem (de) moral, nem (de) construção-civil. Não cincarei nem mal nem caramunha.


19/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 274 a 277


274

Domingo,
18 de Abril de 2021

    As minhas aspirações californianas não vão além da Figueira da Foz, Mira às vezes, no máximo Tocha. Fico-me bem assim, crê-lo não é ingenuidade V.ª nem minha. É a minha domesticidade, espécie de patriótica índole de incurável provinciano. Fui uma vez a Cabo Verde – e voltei logo que pude. Em Bruxelas estive quatro dias – chega bem. Paris & Londres, nunca-jamais-em-tempo-algum. O torrão-local é-me suficiente: tenho aqui os livros, algumas fotografias, música + do que q.b. Ainda fiz, algumas vezes, alguma Espanha. Ao Algarve já não vou há trinta anos. Tenho o passe mensal dos autocarros de Coimbra: já é muito mundo.

275

Três em ponto da tarde.
Os vivos tratam de si.
Irão, Israel, Índia – Ignomí-
nia: nenhum acabar de
misérias voluntárias aí.

276

15h06m
Já dormem em pedra há muito muitos príncipes.
Floresta em bruma chama-os em sonhos de quimera.
Vou secretariando essa puridade sem porvir.
15h14m
Peças sinfónicas pedem fidelidade, esmola de atenção.
Infinitude selectiva, gratificada de óbolo belo.
Em purificada soledade, não é tão agreste a continuidade.
16h12m
Dissemelhantes sensibilidades guerreiam-se surdamente.
Poderiam (deveriam) não proceder de tal maneira.
Todavia, resistem a qualquer boa-fé, são irremediáveis.
16h44m
Existência de mulheres repousando um pouco entre rosas.
Passagem levíssima de zéfiro bucolizante.
Marulhar dulcíssimo de águas de arroio, frigidíssimas.
17h41m
O cortinado filtra a luz áurea, doméstico lume ambiental.
Certa doçura melosa doma as pálpebras, aquieta o coração.
Quietude que ouro vale, sossegado o entendimento.
19h52m
Imagens: gente em uma praça, um homem gritando, arvoredo,
carros, vozearia de energúmenos, fealdade geral,
panos berrantes, certo triunfo da bípede imundície.

277

    Em remo(r)to ano-lectivo longe de Coimbra, tive direito a nove meses consecutivos de inverno inclemente. Digo mais & não minto: da/na minha existência, foi nesse inverno ingente que me apercebi da natureza irremediável da vida – a geral como a particular: pois sem remédio se morre como sem remédio se nasce.


18/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 273

© DA.

273

Sábado,
17 de Abril de 2021

    Amarguei ontem certos sentimentos & emoções & momentos & tensões que, naturalmente, resultaram em versos medíocres. Não o lamento. Registo-o: mas lamentá-lo, não o lamento. Tal como o (grande) Outro, “merda, sou lúcido!”.
    É Sábado, enfim. Ampla luz beneficia o mundo exterior. É bonito o mundo, se postas de parte as merdas que dele fazem parte também. Apesar de algumas melhorias, a crise sanitário-social parece ter vindo para ficar, como o Toyota de antigamente. Pior: o execrável Zé Sócrates está de volta à ribalta. Figurinha de home’zinho pequenininho, parvenu-de-arribação: sem estatura, sem hombridade, sem uma pinga de sangue que mereça um lenço. Não me vale todavia uma linha mais sequer.
    Sobre amarguras de ontem, lá vão. (Não vão – mas pronto.) E sobre ontem (lá vai, isso sim), mais nada.

17/04/2021

PARNADA IDEMUNO - mais quatro de ontem, 6.ª-F.ª, 16 de Abril de 2021: 260 a 263

© DA.

260

    Escrevo esta carta, contigo na mente (I), que (te) não remeto nem remeterei.

    Querida:

    Disponho tão-só do meu corpo para levar a cabo a minha vida. Não creio em alma mas em mente. Não embarco em espírito mas em presença. Tenho toda a razão do mundo: a minha razão do meu mundo. Toda a gente tem toda a razão do mundo: razão dela, mundo dela.
    Hei cometido (e mais cometerei) erros-palmatórios. Quem não idem? Padeço de um amor que me não fala. Padeço de outro que me fala de mais. É comigo. Não é contigo. Nunca será contigo. Mas já foi contigo – ou contíguo a ti.
    Continuo a intolerar o luto. Continua, o luto, a estilhaçar-me a infância – e olha que deveras fui feliz na infância, eu nem era para vir-me de literaturas. Tenho Amados Mortos, que em Vivos amei a sério.
    Já cri – e não me dei bem com tal. Em ti, por exemplo. (Como tu em mim, bem o sei.)
    Eu nunca teria vindo para a Poesia se ela não fosse, por assim dizer, do caraças. Sabes bem que a má (a poesia, a minúscula) me chateia. Assim idem sabes que a Boa me vivifica, me atira aos ares como o meu Pai me fazia enquanto a minha Mãe fingia ralhar-lhe Olha-o-Menino.
    Não devassei o Oceano Atlântico para ir ver & saber do Rui. Morreu-me lá longe, mais não padece. Levei porém recados ao Jorge, meus & do pai, talvez algum cento de escudos também. A Mãe, amãe-a. O Pai, amei-o. Tenho ora um gatito claro, penugem leve-leite-creme.
    Sei completamente o que digo & o que (não) perco.
    Recebo todos os dias, mesmo sem marcação.

Parnada Idemuno

261

    JMFJ, op. cit.:

    “Temos um corpo e não somos corpo
      uma alma uma liberdade e não somos alma
    ou liberdade.”

262

    Vez nenhuma há em que eu, passando ali à Rodoviária, na Fernão de Magalhães (Coimbra, senhores), não ouça (até fisicaverbalmente) a Senhora-minha-Mãe soprando-me
   
     – Lá está a República a vender arrufadas.

    A República era a mulher de avental & blusa escarlate-virente. Tinha banca de arrufadas na dita gare. Tal como a minha MaterTi’Avó, irmã do Pai da minha Mãe, tinha banca de arrufadas na gare/Estação-Velha. Mas esta, que era Maria dos Santos & cuja voz se ouve em off no filme Capas Negras protagonizado por Amália Rodrigues & Alberto Ribeiro, morreu sem outra descendência que a destes versos, em (p)rosa embora.

    Vez nenhuma – disse.
    Voz alguma – digo.

263

    Sei o mal que causa o amar um corpo
    pelo corpo,
    não a voz imaginada
    que nos à nascença historia o
    amá-lo,
    que sinónimo é, logo pois nascido, de
    perdê-lo.

PARNADA IDEMUNO - 258 & 259



258

Sexta-feira,
16 de Abril de 2021

    Pedro Cegonha Cobrica Reixelo, profissional solitário de antiquárias coisas, levanta-se antes da primeira-luz há mais de quarent’anos. É pessoa que muito aprecio. Tem compósita qualidade, o seu carácter: educação, trato, discrição, hombridade.
    Refiro-o hoje porque-sim, que é sempre curial razão. Recordo-me de lhe ter comprado um precioso opúsculo de 1925 (impresso na Imprensa da Universidade de Coimbra, tinha minha Mãe um ano de nascida; e meu Pai, oito): A Fauna na Toponímia Portuguesa, por José Joaquim Nunes, sócio correspondente da Academia das Sciencias de Lisboa. É separata do Boletim da Segunda Classe, volume XVI.
    Há muito não lobrigo tal cavalheiro. Há muito não vem ele cafeinar-me a este amplo salão de bebidas & farináceos. Cheguei a conhecer-lhe a extinta, Dona Maria do patrocínio Gateira de Caçapo de Cobrica Reixelo.
    (Segundo o Prof. Nunes, caçapo é coelho novo; cobrica é diminutivo de cobra; e reixelo é cabrito.)
    Eis pois a leitura dando de si, dele(s) & de mim.

259

    Versos maravilhosos da minha leitura de ontem – Crónica, de João Miguel Fernandes Jorge:

    “O rosto, rosa e junho caminhando.”

    “Um rei procura os limites do mar,
    o poeta o sono através da unidade.”

    “Com a morte ardem
    os animais,
    nossas coisas familiares.”

    E estes ainda:

    “Sobre os lábios do homem a
    única duração da vida é razão
    de um silêncio ou de uma rosa?”


16/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 249 a 257

© DA.


249

Quinta-feira,
15 de Abril de 2021

    Leio:

    “(,,,) é por um direito absoluto do poeta a mentir que textos seus acabam sendo uma imprevisível verdade inacreditável, a infinda verdade em contínua alteração de um falsário (…)”

    E:

    “(…) o passado tem sempre uma vocação fabular (…)”

    E ainda:

    “(…) o realismo e a deturpação, a montagem e o delírio, isto é, a poesia.”

    São incisivas palavras do Joaquim Manuel Magalhães prefaciador de Crónica (Círculo de Poesia, Moraes Editores, Lisboa 1977), de João Miguel Fernandes Jorge. Cito-as por achar que acertam em pleno: não só no belíssimo livro de JMFJ mas também no dizer-poeticamente-da-poesia-alheia. (O dito prefácio intitula-se Arte de Memória, pp.11-17, op. cit.)

250

    A mágoa invencível é não poder partilhar (isto é: comungar, pela etimologia) a luz que a tarde vai hoje sendo através-Coimbra, deles & minha pátria. Com quem? Com os meus Amados Mortos: dois Irmãos, um Pai & uma Mãe.
    Tenho de assobiar para o lado, cuspinhar para outro, fazer-me de distraído, absorto – e vivo, não ’inda morto. É o que faço.
    É o que faço.
    Sirvo-me café,
    sirvo-me bagaço.
    Luz nublando-se
    sobre quem é jacente
    gente na Conchada.
    Duas datas, um nome:
    2+1 = nada.

251

    Uma vez por semana, canto & toco a um Irmão que tenho vivo & por alheia remunerada gente cuidado. Tenho meia-hora, não mais, para concertar & consertar-me. Pouco sendo, mais é que nada embora. Nada alfim seremos ambos – como tudo & como todos.

252

Infeliz de si há-de a Morte ser:
por afinal imortal,
por isso de infância interdita.

Condenada pois a jesuscitar:
de três em três dias – e sem amêndoas,
com cordeiros degolados só.

253

Fazersatisfazer:
em palavra-velha, verbo-novo.

254

À estética desses anos
(quase cem volvidos, agora)
devemos Groucho Marx & Fernando Pessoa,
Buster Keaton & Ribeirinho.
Antes de o cabo austríaco,
Berlin explode champanhe-de-putas,
a pedomania exulta, velhas dão-se de cono por
cinco maravedis
ou um cálice de anis.
E mesmo assim houve quem fosse feliz.

255

    “(…) conheço bem, fui lá almoçar c’a mulher (…)”

isto disse um cavalheiro em terraço explanando-se esplanado ao tíbiodúbio sol
do entardefenecenoitecer de hoje-quinta-feira-quinzedabril-do-parnada-idemuno

a mulher é ainda algo que se acarreta ao ir-se (& ao vir-se) almoçando fora

digo:

a mulher do dito cavalheiro

q’a nossa é sempre diversa
filha da neve
mãe do nosso gato

por um rato.

256

Nada se obste à flor que outra sombra prefere à luz de todos comum
(ou vulgar)

Fenecerá ela como todas, um número em mármore
ou um chip no telemóvel ou um click no site do crematório
será/serão
quanto dela perfumar há-de o nariz-nenhum da colectividade.

Talvez em (p)rosa isto mais bem resulte:

    Saí eram já dadas bem as dezassete, tinha, mantinha & comigo levava duas inscrições a tostões no eldoradeuromilhões. Fui ver, a neve caía – nem Augusto Gil, nem dois & ½ tornados mil. Aceitei os não-números. Esplanadei-me em correcto quadrilátero que dá de si certo estabelecimento em meu emprestado bairro há muitos anos sito. Sobra-me o escrever-por-escreviver – desde que bem, condição mínima.
    J. & J. amancebaram-se, homens porém sendo. Diz que desde a Antiguidade mais livresca assim etc. Passa-se que escrevem ambos mais do que muito bem. Leio-os a ambos há uma multiquilogramática carrada de décadas.
    A putanheirice-brasuca também rompe livre por estas esplanadas. Sempre em advers’oposto passeio, passa sem passear o chinês-mealheiroador. O esgrunho-de-serviço confunde o Salgueiro Maia com o 50 Cent. Tudo bem. E o branco-velho era do senhor Joaquim Roque o cálice-eleito.
    Saí eram já dadas bem as horas-de-sair: do professoredo, do jornaleirismo, da ignorância-voluntária, do carneirismo (mais sá ou menos sá), do estalinismo-franquismo, do santacombadismo & do smartphonismo.
    Esplanadei-me tomando de íntegra o livro Crónica de João Miguel Fernandes Jorge. Foi escrito & publicado era vivo ainda (hélas!, por um ano só, talvez menos) o senhor Poeta Ruy Belo. É a partilha-possível. Fernão Lopes, os senhores Pedro(s), da guerra que moveu Castela/Leão/Aragão/galés-de-Portugal etc.
    Ou o 25 de Abril/74. Ou o 28 de Maio/26.
    Nada à flor seja obstáculo, que para o céu cresce,
    os pés em terra embora.

257

    A Bondade é menos contagiosa do que sua gémea Mal.



Canzoada Assaltante