N.º 94, TALHÃO
M
Leiria, tarde de sexta-feira, 28 de
Setembro de 2012
I
Paz e apatia,
coisas tão diferentes como
a diferença
que vai de um
eu
a seu
mim.
Não desdenharia porém ser apático, algumas
vezes.
Agradável, muito agradável: finos impactos
do começo de chuva – no espelho-de-água em círculo da praceta, na Cidade a
nenhures.
Também que não tanto as coisas, mas a partir das coisas – e até às coisas: as palavras que as coisas
deixam ser.
Exemplo: escrevendo
COMPANHIA DE NAVEGAÇÃO
para ser(-se-sentir-se) ocidental em
viagem, quieta esta embora.
Cardial a nenhures: a Cidade, a Pastelaria,
a Burguesinha televisual e sua maleta pejada de cosméticos calmantes.
As coisas que as palavras deixam ser
coisas.
Por exclusão de partes & inclusão de
artes.
(A xávega, por exemplo.)
Lápis-tinta, papel-caderno: receptação em
dimensão crítica – seu-real-valor-e-conspícuos-derivados.
Michael J. Fox, coitado, cheio de Parkinson
como uma faia ao vento.
Acaba de morrer Andy Williams (Moon River).
Entedia quanto entendia & estendia o
dia todo.
Quem? Ele é à escolha.
Mas tudo sem aflição e sem agonia: tão-só
fantasia,
isso sim, ia, ia.
II
Correio
da Manhã, 28 de Setembro de 2012
Bebé
enterrado sem despedidas
Foi
um enterro como nunca houve nenhum no cemitério de Marmelais, em Tomar. Rápido,
silencioso e desoladoramente solitário. O recém-nascido morto pela mãe, em
Figueiró dos Vinhos, foi sepultado, terça-feira, ao final do dia, 25 dias
depois da sua morte.
Por:
Helena Silva
A
minúscula urna foi transportada por um funcionário da funerária e, no local,
presenciaram o acto dois funcionários do cemitério. Não houve lágrimas, nem
despedidas. Nenhum familiar se deslocou ao cemitério.
“Foi uma coisa muito
triste, muito chocante”, afirmou Paulo
Besteiro, um dos coveiros do cemitério de Marmelais. Pai de dois filhos ainda
pequenos, contou ao CM que ficou de tal forma perturbado com o caso que, no dia
seguinte, foi, ele próprio, colocar um pequeno ramo de flores na pequenina
sepultura. São essas as únicas flores que ostenta.
O
menino não chegou a ter nome. É o número 94 do talhão M, que o cemitério
reserva às campas das crianças.
O
corpo do recém-nascido esteve, nestas últimas semanas, no Instituto de Medicina
Legal de Tomar, desde que a mãe, Alexandra, de 27 anos, foi detida pela PJ e
confessou a morte do filho, bem como de outros dois, nos últimos anos, em
circunstâncias idênticas.
Entrou
em trabalho de parto e, assim que o bebé nasceu, colocou-o num saco de
plástico, asfixiou-o e escondeu-o num guarda-fatos do seu quarto, na casa onde
vivia com os pais.
A
família assegura não se ter apercebido de nada, nem sequer da gravidez. Os
familiares também não reclamaram o corpo do recém-nascido, que foi a enterrar
depois de submetido a vários exames periciais, num funeral social.
Alexandra
está presa preventivamente no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo,
em Matosinhos.
III
Esta ideia de o passado ser ao largo em
profundo:
irresgate do mundo havido em combate
corrente,
vão do mais vácuo vazio, que é o da gente
ensimesmando estreita a flor do mundo.
O
menino não chegou a ter nome.
É o
número 94 do talhão M.
O cemitério o reserva e o some
na campa de criança qu’inda geme.
IV
Logo à noite há-de ser que voltem a casa os
pedreiros
de dia às costas dado a fazer casas aos
outros.
Não é que esteja frio, mas faz frio pensar,
às vezes.
Pensar o que não pensam os pedreiros em
cas’ à noite.
Eu sempre fui dado à alegria das grandes
chuvadas insensatas.
Corria na infância o meu monte, nem futuro
havia.
Tudo então se resumia, p’ra minh’ alegria,
a ser, depois da noite, o mesmo perpétuo
dia.
Esta manhã despertei uma hora mais tarde
que de costume.
Senti-me logo como se houvesse sido
roubado.
Dissipou-se-me porém depressa o azedume:
pela casa a mulher urdia já o dia renovado.
Engoli um bolo, chavenei-me um leite,
senti que ela me queria a barba bem rasada.
Fiz-lhe a vontade para seu deleite:
num minuto, nem pêlo à vista e mai’ nada!
Ela foi, fiquei-me eu, depois lá fui
encher pelos cafés versos e cinzeiros.
Disse adeus ao Tó, ao Zé e ao Rui
– e esperei pela noite dos pedreiros.
V
Tenho felizmente declinado muito convite.
Aborrece-me todo o aborrecimento que não
seja meu.
O meu tédio interessa-me mais, felizmente,
que o de quanta (superior a mim,
evidentemente)
gente (muita, infelizmente muita feliz
gente)
que por aí anda a desaborrecer-se
aborrecendo
a outra de ela não muito pouco nada
diferente.
VI
Meto uma cerveja no estômago como a manso
projéctil
em culatra individualizada: uma só, que o
tempo,
assim de parda doçura pré-pluvial, também
mais
não pede, café e chá sim, a chuva
aguardando.
Não está frio. Acho até que nunca esteve
tanto não-
-frio na minha vida, que já não é curta.
As coisas rodam a roda de si mesmas,
zodíacos
inofensivos bocejando urgências de ilusão.
Rodam à roda a-roda-a-rosa de si mesmas, as
coisas-rosas. A única coisa preta que
aquele homem
branco ali tem, é o par de sobrancelhas
arbustivas,
tudo de resto se lhe vai encanecendo em pó.
(Passa) um rapaz que parece um pífaro:
magrinho, comprido e cheio de buracos
decerto da traça –
ou da (passa).
Fila breve no multibanco de ao pé da
farmácia.
À frente, o manco (o Zé, o da Anastácia).
Ao meio, a Marlene, futurista sem
Marinetti.
E, derradeiro, o Tó Pantene, artista da
trótinéti.
A brasileira das cinco passa a caminho do
pós-colonialismo.
O polícia Anacleto consulta o pulso barbudo
a descontar o tempo do turno que tanto o
demora
horagorademora como, menos a morte, nesta
vida tudo.
O rico decote da Juliana vem farfalhar suas
natas
à bandeja inox da mesa de alumínio,
do ócio fazendo o tirocínio,
a bela farta Juliana já de fim-de-semana.
Que conste, ninguém morreu no bairro ’té
agora
– e já deram as cinco e mais dezassete.
Passa o Chico, o mafarrico, em sua
veciclete
a dar-dalar-pe-pe-la-dar à desora.
Aqui felizmente ninguém suicida
recém-nascidos.
O mais que fazem, é lardaterceiridadear os
velhos respectivos,
coitados, que, já mais pergamortos que
minhosvivos,
esperam ’inda renascer dando vagidos.
Torto em combate, Monsieur de la Margot
espera comece o filme no cinema que fechou.
(Onde era o cinema, é hoje a iurdcoisa dos
dízimos:
Cristo à Zé Carioca e milagres para
símios.)
Alexandra, 27 anos, três bebés sufocados à
nascença.
Santa Cruz do Bispo, prisão de Matosinhos.
A gente nem sabe o que sente ou o que
pensa.
(Entre a Rita e a farmácia, há uma boa loja
de vinhos.)
Faz frio pensar às vezes, sim.
Estas coisas no jornal como se nada se
passasse
ou fosse.
Trate cada um de seu jardim.
Se não tem que comer, que o trabalhasse
ou foda-se.
Milhões deitados à rua por toda a Europa:
de pessoas.
Por causa de
milhões roubados às pessoas de toda a
Europa:
em euros.
Eurovegetativos:
menos os mortos do que os vivos.
Sua Excrescência
o
Residente da Ré Púbica
Sua Obsolescência
o
Primo Sinistro
Descem a cueca
Arrepanham a túnica
E toma lá merda
E aqui vai disto.
Até que.
Até que algum dia alguém os foda
em nome individual pela malta toda.
(Entretanto, chove talvez em Marmelais,
cemitério breve ali em Tomar.
Número 94 – nem menos, nem mais.
Nem nome ele tem. Nem vai
precisar.)