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DA, Leiria, 30 de Abril de 2012
62. NA ÚLTIMA TENDA – 25 QUADRAS
IMPOPULARES
Leiria,
quarta-feira, 7 de Dezembro de 2011
Homizia-me a memória em
corpo-ausente,
torvelinha de pássaros a espiral de
labaredas,
há muito me entreguei à vitoriosa
perdição
no meu país de conchas vazias
naturalmente.
*
A tarde assenta na última tenda.
Parecemos perdidos no laranjal escuro
já da luz.
Uma mulher ama um homem e diz-lho e
cora.
O homem recolhe as máquinas da
noite, pede-lhe água.
*
Sou o que vai morrer em cada amigo
doente.
Penso em cada um, penso nas ruas sem
ele.
Não inquiro da mariposa a eternidade
de quatro dias.
No café as coisas são mais simples,
as vidas dançam.
*
Ínclita perfeição orla de branc’azul
a barca dos anos.
Vi duas fotografias com o último
encontro de três irmãos.
Todos mortos já, ainda porém
conversando-se.
Na concha da minha mão o sal da
garrafa que os saúda.
*
Um engenho de madeira para águas e
farinhas.
Uma laranjeira fronteiriça do Tempo
e do Nada.
A vida geométrica dos patos à flor
do Lis.
A minha família calada olhando o
descer da vela.
*
O sufrágio irrepreensível do
matadouro.
A euforia sangrenta da maternidade.
O idioma do ouro.
O relâmpago da idade.
*
Tenho-lhes um amor sem declínio de
postigo.
Sou para sempre o infante que os vê
passar.
Um dia levam-me e eu não volto.
Uma garrafa e um pouco de pão
municiam a espera.
*
A glória de certas pessoas: cabra
alta em penhasco.
A bondade de outras: linho lavado em
mesa de castanho.
A lareira que outras são: emissoras
da palavra precisa.
Todas as que vieram ao funeral da
minha Mãe.
*
Um homem ama uma mulher mas não lho
diz ainda.
Em Coimbra, a Vila Marini não me vê
já passar.
E no entanto as minhas idades são
por lá pedra.
Chorar sisudamente é de homem.
*
Jornais motivam recolhas de sangue e
medula.
A empregada da papelaria suspira por
um camionista.
Jardins japoneses noruegam-se todos
à primeira neve.
Viúvas de soldadinhos esperam a
última nave.
*
H. Silva Letra, de Vieira de Leiria,
1927.
Raul Brandão e a mulher ao lume em
silêncio.
Teixeira de Pascoaes, a montanha.
E Raul Brandão, o mar sozinho.
*
E Wenceslau de Moraes, o cais.
E Camilo Pessanha, o linho.
E António Nobre, a gravata.
E José Afonso, o candeeiro.
*
Uma pouca de maresia no frontispício
da respiração.
O ribeiro gerando azenhas (mas
interrompo a quadra
por causa do Gabriel, um pequenino
mui pequenino
que veio ver que raio de coisa fazia
eu, escrevendo ou quê).
*
A
vida ainda parece senhora de ser por vezes boa.
Dei
um rebuçado, um lápis e um papel ao Gabriel:
três
venenos dulcíssimos.
Ele
sorri com o corpo todo: desenhei-lhe dois cães.
*
Uma luz celeste picota diamante alienígena.
Carlos V (I de Espanha) era de 1500,
já lá vai.
Cometidos são a esta hora crimes
imundos.
E mundos novos abrem os nascimentos,
os óbitos.
*
Enseadas e ansiedades e enteadas e
entidades.
O chinquilho e o junquilho e o pão e
o peão.
Orlas e borlas e baías e baias.
Éguas e águas e a série e o assírio.
*
Que uma trovoada de zângãos fervilhe
o meu sangue
na hora de me reapossar de ti, caída
a manhã.
Que o nosso estremeção-amor de motel
beirão
perfume de mancúspias o asfalto dos
longes.
*
Uma ínsua húmida coroe o delta do
teu nome,
minha querida, antes de nos
abstermos de tropelias mais.
Comunicarei às autoridades a tua
deserção de minhas agonias,
assim como formularei queixa contra
ti e descendente(u)s.
*
Ao bar da noite acodem já as
tremendas borboletas douradas
do comércio de avinhados leites e
outros fulgores.
Uma espécie de paz nimba o balcão:
santidade
do barman, esse apóstata do útero da
mãe.
*
Fui dela por umas horas mas paguei o
táxi.
Ela levou que contar à sua tertúlia
de café-coiffeur.
Eu lavei-me em casa quase
minuciosamente.
Telefonei a um amigo, jantámos em
silêncio.
*
Por minhas vísceras que te amo de
língua.
A morfologia de um sorriso assenta
na pobreza.
A pérola chamusca os baldios brancos
circunvizinhos.
A prisão está repleta de sacerdotes
da lentidão.
*
Agora a noite toma seu cálice
furtivo.
Num bosque, sem telefone nem
alternativa, seríamos felizes.
Toma, fica com este dinheiro para o
táxi,
eu vou ver se me encontro com uma
azenha.
*
A esperança é a pachacha húmida dos
incautos.
Paris não é uma festa, é uma
trabalheira.
Eu podia voltar a trabalhar na
construção civil, houvera-a.
Um semestre na Argentina, outro na
Noruega.
*
Nasceu uma filha a um casal amigo,
telefonaram-me logo para
aconselhamento,
disse-lhes que não podia, que já não
sabia
que fazer de tão pouca tinta e
nenhum papel.
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