© DA, Leiria, 7 de Maio de 2012
39. FALA O ORGANISTA
Leiria, segunda-feira, 31 de Outubro de
2011
Levi Malho:
Entretanto,
as vidas humanas silenciosamente passam, as pessoas vivem e morrem, amam e
sofrem.
*
A minha antropologia é tão urdume e tão
prosa quanto as outras (quase) todas. Há decerto relâmpagos poéticos – para quê
negá-lo? Partilho textos com as pessoas, verbais sobretudo. Levo-lhes o meu
corpo e levo-lhes sinais do que (se) passa nele e com ele. Sei bem que isto até
pode não ser tão interessante quanto parece. Mas insisto sempre, resisto
sempre.
Frequento assiduamente determinado
estabelecimento de café & licores. Tratam-me lá pelo nome próprio. Há um
velho de ar vicioso que anda sempre a cravar cigarros. Também há mulheres.
Algumas são de uma beleza discreta mas chamativa. Aforro essas visões. Consulto
o jornal do dia. Leio umas coisas filosóficas num antigo manual escolar de boa
qualidade. Julgo entender algumas coisas. Não sou um herói.
Ligo-me à medusa. Tomo a minha bebida,
versilibro-me. Ensaio muito a arte descritiva: porque quero viver
musical-cenograficamente. Quando visito os cemitérios, recolho o silêncio
clamoroso da pedra. Talvez eu seja um artista. Como todos os outros – um
artista.
Revivo anos que não vivi. Escuto homens e
mulheres mortos antes da minha vi(n)da. Nevões longínquos em remotas regiões
fazem-me cismar. Sim, cismo bastante: talvez por ser velho desde menino. Aquele
homem coçando distraidamente as costas. Camisola cinzenta de tecido fino.
Seremos todos cantoneiros de nossos mesmos lixos, um dia. Não seremos?
Singro grafismos como se os sangrara.
Recolho as esfinges pelas ruas. Banhei-me em rios muito solitários. Às seis da
manhã, a pressão do silêncio reverberando na cabeça. Se não um sentido, ao
menos uma orientação para a vida.
Um doutor de 93 anos fuma um Português Suave sem pressa. Uma
telenovela (estúpida como todas, sem quase) arde de cor no televisor. É por uma
tarde parda. Isto é o século XXI. Isto é a eternidade possível: a eternitarde
portuguesa de uma segunda-feira terminal de Outubro.
*
Os cães faziam existir o pátio e a
infância.
Era quando vi que nascer era acordar.
As estações despertavam no monte como
festivais.
A figueira da Carmo nunca falhava um figo.
Um pouco de leite pingando açúcar: o mamilo
amado.
O olhar do cão: a lealdade toda água-luz.
As mãos do Pai: ramos da árvore inicial.
As mãos da Mãe: economia, pão, aroma, sal.
Uma paz nos desça à terra imemorial, entre
faias.
Que o nosso sono possa ser filarmónico.
Eu era dos meus cães como se um deles.
As estações viviam de nós, atentos e
abrigados.
Que o nosso amor sofra de ter sido puro.
Que esta mulher diga deste homem: é meu,
sou-lhe.
Que tal homem se reconheça em tal verso.
Que as pessoas sejam cães e infantis e
(f)estivais.
*
Sou o organista de igreja do templo que me és.
Misturar-nos-emos de acordo com os
preceitos da lei.
A infância é o maior futuro: um gato
sabe-o.
Venho do lado das sombras, dar-me-ás (a, à)
luz.
*
Torno à tremenda beleza do mar quando
outono.
Falo com a minha mulher puerilmente.
Faço-me cliente da garrafeira dos dias.
Também os mais alvos dentes trincam merda.
*
O dia é vasto como um papel em branco.
As noites dos maus casamentos escrevem
traições.
Utensílios de barro ligam-nos à
Pré-História.
Quantos não somos práticas funerárias em
vida?
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