38. VENDO FILMES EM COISAS PARADAS
Leiria e Pombal, quarta-feira, 26 de
Outubro de 2011
Outo(r)no
à infância agora que Outubro deixa de ser um estio falso para se portar como
deve: uma folha de cartão prensado em cinza e ligeira pluviosidade fria. Volto
à escola, tenho seis ou sete anos, reaprendo a ler & a escrever & a
contar a vida incontável, a inumerável vida do meu Outon’outubro.
A
manhã aí está – e não é menos gloriosa do que as outras, as perdidas como as
que venho fechando em cadernos paginados.
Estamos
todos em trânsito, Ana: traficamo-nos, Filomena: sufragamo-nos, Paula: prendemo-nos,
Cristina.
Somos
todos a cortazariana cebola: descascada ao infinito, Júlio: perfumada de
lágrimas, Jorge: migada de dedos, Ani: cardiológica, Fernando Jorge.
*
Amanhã,
faria (não fará) anos a vida da minha Mãe. 27 de Outubro. Sigo a reedificação
da Princesa, a princesinha Corre-Montes de 1924. Mas é 2011, isto.
*
– Contudo se desde
a infância se operasse logo uma alma com tal natureza, cortando essa espécie de
pesos de chumbo, (…) também ela a veria nesses mesmos homens, com a maior
clareza, tal como agora vê aquilo para que está voltada.
(Isto
é Platão, in República.)
*
Vejo
filmes nas coisas paradas.
As
crianças como índios primevos da humanidade.
Os
sacos de rebuçados ardendo a cor da Língua.
A
medusa como placenta nadadora.
A
transparência de um olhar alheio.
A
circum-navegação nefelibata dos sonhos.
A
natureza narcótica do amor.
O Poço do Engenheiro, a Mata do Tenente.
A loucura sistémica do orga(ni)smo.
O amor que a minha mulher me respira.
A periferia do rosto feita de cal-viva.
A carreta funerária banhada de lágrimas.
O bocejo existencial da mulher do bazar.
O cão à chuva no pátio rural.
(Acordei hoje com a Mãe viva à cabeceira.
O copo da água nocturna não amanhecia.
Do estore, a fímbria cinzelava as sete
horas.
A gata era toda-egipto na meda de roupa.
Os pés viviam-me sozinhos na friúra dos
lençóis.
Uma pessoa mais se menos se ama.
Ela era viva e compreendia-me da
cabeceira.)
Vou ali a Pombal, conheço a nihilificação
do mundo.
Isto é tudo uma espécie de sacerdócio.
Pequenos peixes fritos douram um prato de
faianças.
No Ilídio da Cardigo, consulto os rostos
palavrosos.
Está a chover, telefono quando não estiver.
Romarias e Marias passadas ressumam
estrofes.
A polpa do passado apodrece em fruta.
Assenta-me bem, esta tristeza têxtil.
O nevão das amendoeiras, R., como sabes.
A força da vida desflorando barreiras.
Uma casa-de-putas com laranjeira à porta.
A ave-do-paraíso sem dinheiro para pôr
ovos.
Os Himalaias andinos: sem fantasmas no
gelo.
E o gelo geológico: riscos do magma sideral.
Razoabilidade das leituras feitas: janela
da escola.
Mãos de criança-cartolina, feitas estrelas
de cor.
A mansidão saciada do útero materno.
Quando a mulher descobre que é início.
As contitas por pagar no aparador da
cozinha.
O cancro que mina o meu amigo A.
Um toque de açúcar na glande.
Quando não estiver já triste, serei
indiferente.
(Sim, visitei-a no lar terminal dela.)
A quem, senão a este caderno, poderia
contar?
E ler? E escrever?
Uma revoada de gardénias toda-marfim no ar.
Coices de ouro na podridão dos dentes.
Estou na escola, é Outubro, a-e-i-o-u.
Pelos intervalos da chuva, a magreza
d’inda-ser.
Um gordo-muito-gay-muito-gordo refocila
liceais.
O senhor padre de Nêsperas lê policiais em
segredo.
Vi um rio, vi todos.
Tenho andado além dist’aqui.
Estive na Rocha do Conde d’Óbidos: era
Outubro.
Em Madrid, as ruas cheiravam a teatro e a
tapas.
Perdoo terem-me feito: uma paz nos
desce(nde)rá.
Na-boca-carmim-um-cigarro-preto.
Os senhores Fernando, Damião, Luís &
Pedro
d’A
Brasileira de Coimbra, quando tudo ainda não matara ninguém.
Toda a gente (se) quer por alguma coisa.
Estranho-pão-de-forma-de-vida.
O bilhete Leiria-Pombal é carreira de três
euros e picos.
*
Ele de boné cinzento, ela de blusa preta
por morte da mãe: casal português do Portugal apresentado na carreira das
12h15m para Pombal desde Leiria. (Rosna-me o estômago por sopa, pão e peixe
frito.) Sair disto mercê da leitura de Levi Malho ou afim: a caminho de uma
noite mais, uma noit’ainda.
As faces das casas com legendas: Rainha Santa Isabel, Tintas e Vernizes,
Felizardo & Com. (Acessórios Hidráulicos e Pneumáticos), Santo Padre Cruz,
Climatização, Sistemas Solares e Equipamentos Pneumáticos.
(“Sistemas
Solares”: está giro.)
*
(No Leiria Retail Park:
LIQUIDAÇÃO
TOTAL
e
VIVA
FELIZ.
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