ATROPELAMENTO MORTAL
Coimbra,
segunda-feira, 13 de Setembro de 2010
Ele pôde, ou podia,
haver sido
César, Aquiles ou
Ulisses, mas Heitor foi
quem foi, este que
morto se achou
ao cabo de poucas
horas depois de
nefasto encontro de
seu corpo com
instrumento rápido
de contundente
natureza, vulgo
carro.
Heitor de Jesus da
Silva Pereira
colhido se achou e às
trevas se
remeteu não ileso
mas lesionado
e em muitos sítios
traumatizado.
Por traumáticas
lesões, por graves,
nasceu causa
adequada de morte,
pois que também a
morte nasce.
Em manhã de chuva
sepultámos a
Heitor, imune já às
disfunções
meningo-encefálicas
e toraco-abdominais,
acrescidas elas das
do membro inferior
direito e de
certificada broncopneumonia.
Era filho de
Petrónio Manuel
Ramos Pereira e de
Carminda Maria
Silva também
Pereira. Tinha
21 anos. Nasceu e
morreu solteiro,
residente que foi
em Cova de Raposas,
Portugal, algures.
Neste gabinete
médico-legal o peritei
e dele pena tive,
como de todos e
todas. Agora em
versos o resumo,
dele porém não
logrando o total, pois
que o pensamento
não é
mensurável.
Sou doutor de pouca
coisa, mas cumpro
quanto me indicou o
Senhor
Procurador-Adjunto
da República desta
Comarca.
Óbito, pois,
certifico de Heitor – e
informação clínica
respectiva boletinizo.
Heitor deu entrada,
ou o entraram,
em centro
hospitalar próprio
a 27/08/1976,
vítima de acidente
de viação, vulgo
atropelamento
sobre passadeira. Ia
só, como todos
vamos e somos.
Veio falecer-se
pelas 23h54m do
mesmo triste e
fatídico
dia, noite já para
ele e para os
que seus, tendo-o
tido,
foram.
De evidente aparato
era seu sofrimento,
nomeadamente de
traumatismo
crânio-encefálico
com contusão
cerebral e
interpeduncular, hematoma
subaracnoideu,
síndrome febril e,
como se não bastara
ao infeliz rapaz,
pneumopatia.
Era de cabelos
castanhos, cor que a íris
imitava. Normal
estado de nutrição.
Masculino, arraçado
de branco e
de idade aparente
em harmonia com
a indicada como
real.
Cinquenta e um
quilogramas, um metro
e setenta e um de
altura.
Descrevo agora o
exame a que procedi do
HÁBITO EXTERNO:
pouco acentuada me
pareceu a rigidez
cadavérica; livores
achei, arroxeados,
fixos e abundantes
nas posteriores
partes do corpo;
sinais de
desidratação sim,
pois que se deu a
opacificação
bilateral das córneas;
também a
putrefacção deu sinais, tais
como a presença de
mancha verde
abdominal ab initio na fossa
ilíaca direita; à
cabeça, usava o cadáver em
que Heitor se
volveu, não
César nem Aquiles
nem Ulisses, mas cadáver
de Heitor,
à cabeça pois,
dizia, usava
equimose esverdeada
peri-palpebral esquerda
na medida de oito
centímetros de comprimento
por quatro de
largura, cicatrizes
de recente aspecto
por a região
zigomática esquerda
e frontal
direita, a maior
medindo, na primeira,
três centímetros de
comprimento por um
de largura; não
encontrei quaisquer
sinais de lesões
traumáticas no
pescoço; no tórax
já, os signos de picadas
me pareceram
próprios do cateterismo
de vasos,
cicatrizados todos na região
clavicular direita;
abdominalmente,
trovei (e trovo)
cicatrizes despigmentadas
dispersas, a maior
das quais medi
na fossa ilíaca
direita, sendo ela
de três por dois
centímetros
de largura; ânus e
genitais órgãos
morreram ilesos;
mais de cateterismo
de vasos sinais
encontrei em picadas pelos
membros superiores,
que nomeio em
braço, flexura e
antebraço direitos; em a face
medial do braço
esquerdo, e com medida
de vinte e oito
centímetros por cinco idem
de largura, ténue,
mas horrífica sempre,
área equimótica
esverdeada, sendo-lhe
paralelas algumas
equimoses arroxeadas,
destas a maior
valendo cinco
centímetros de
comprimento;
descrita a área de
equimose, mais digo
que sobre ela vi
cicatriz
no terço inferior
da face medial
do mesmo braço, de
também cinco
centímetros de
lonjura;
pelos membros ditos
inferiores mas que
a todo o resto do
ser-corpo
sustentam, removi
da perna direita
a ligadura que a
envolvia, observando
então equimose
esverdeada outra e
com zonas
arroxeadas também, medindo
vinte centímetros
por dez no terço
inferior;
deformidade e anormal
mobilidade
claramente verifiquei
no terço inferior
dessa direita;
bem ferida ela
estava, que duas
feridas contusas a
pictoravam,
isto no terço
inferior da face
anterior, a maior
com dois
centímetros de
comprimento e vestígios
de dois pontos; no
joelho sinistro,
oito centímetros de
comprimento eram
feridos também e
ainda.
Procedi então,
examinador, ao rol do
HÁBITO INTERNO:
soube que,
da cabeça,
nas partes moles
(tegumento piloso,
periósteo e músculo)
vi sufusões
sanguíneas subepicranianas;
nas estruturas
ósseas
não encontrei
sinais de fractura
nem
na abóbada nem
na base;
tantos anos levo
disto
(que me levam a mim
mais
do que eu a eles) –
e
ainda me comovo (!)
ante
meninges como as de
quem
Heitor foi,
pois que em
reabsorção vi
certa hemorragia
subdural
occipital
e
bilateral,
acentuada porém
embora mais
à direita;
na mesma
localização,
outra hemorragia,
mas subaracnoideia
esta
e, ainda,
cerebelosa,
em reabsorção
também;
já no encéfalo,
nada de bonito,
assim que o
povoavam
hematomas
intracerebrais
nos lobos
esfeno-temporais
e occipital não
dextro,
por esquerdo ou
sinistro,
medindo o maior um
centímetro de
diâmetro;
mas, ainda
mais,
zonas de contusão em
zona parietal
direita e
parieto-temporais
bilaterais;
cerebral edema
concluía do
encéfalo
o mau poema;
peso encefálico,
quilo e
trezentos gramas;
no pescoço, sim,
havia,
na laringe e na
traqueia,
muco purulento e
(pobre Heitor,
que mais não
comerás,
rapaz)
fragmentos
alimentares à superfície
das mucosas;
no tórax,
sinais fracturados
não topei
nem em as costelas,
nem em a
cartilagem,
nem na clavícula
esquerdas;
nas suas irmãs da
direita,
porém
(ó doce Carminda,
de Heitor
a Mãe!),
presenciavam-se
calos ósseos
(não ócios, mas
péssimos negócios)
ao nível do
terceiro
arco anterior
e dos sexto e
sétimo
arcos médios;
circa vinte centímetros de líquido
amarelo-citrino,
pericárdico humor,
na pericárdica
cavidade e no
pericárdio
propriamente
(mal)
dito;
pesava de Heitor o
coração
algo como
trezentos e
cinquenta gramas
(e com eles,
gramas,
terás amado,
que mais não amas);
do coração de
Heitor as cavidades
bolçaram sangue
fluido
com vermelhos
coágulos e
fibrinosos;
palidez moderada
presidia ainda,
ainda no coração,
a hemorragias
subendocárdicas
em reabsorção;
quaisquer
alterações macroscópicas
nas artérias
coronárias
não vi;
aorta com discretas
manchas lipídicas;
à superfície das
mucosas de
traqueia e
brônquios
vi que havia
muco purulento;
livres e vazias
(como de certas,
tantas!, pessoas vivas
a vida)
eram de Heitor
as pleura parietal
e
cavidade pleural
direita e esquerda;
mortalmente colhido
pelo lado direito,
Heitor não pôde
eximir dele os
pulmão direito e
pleura visceral a
discretas sufusões
sanguíneas subpleurais;
discretos focos de
antracose;
lobo superior de
cor acinzentada e
aspecto condensado;
zona de parênquima
não arejado do
lobo inferior,
afundando-se,
dessas zonas
colhidos,
fragmentos em tina
com água,
saída de pus dos
bronquíolos
pós-compressão
das superfícies de
secção;
estes aspectos
todamente apontavam
compativelmente
para uma
broncopneumonia aguda;
abundantes eram
congestão e edema
dextro-pulmonares;
tudo idem,
sem consolidação e
sem pus,
no pulmão esquerdo,
que valia
seiscentos gramas,
menos duzentos, portanto
e por jeito,
do que o direito;
do tenro abdómen
as paredes
apresentavam
infiltração
sanguínea em
reabsorção
nos músculos
abdominais e
fascias
da parede abdominal
antero-lateral
direita;
nascido e morto em
Portugal,
de Heitor o
peritoneu e a cavidade peritoneal
mostravam
atroz infiltração
sanguínea dos
músculos
retroperotoneais direitos, com
focos punctiformes
(tão negros!) sobre
o peritoneu
parietal,
correspondentes
eles,
ou estes,
a focos de contusão
em reabsorção;
escureceu-se-lhe
e nigerrimamente se
lhe punctiformou
variamente
o grande epíplon,
o tudo
correspondendo a zona e focos
de contusão
reabsorvidos;
em idêntica
reabsorção
era do mesentério
a sanguínea
infiltração;
lisas eram
do fígado,
que mil seiscentos
e cinquenta gramas pesava,
as superfícies
exterior e de secção,
mas cujos aspectos
untuoso
e cor amarelada
traíam
a esteatose
hepática;
bílis havia,
mas cálculos não,
na vesícula e vias
biliares;
dormia-lhe no
estômago,
lhe de Heitor,
cerca de cem
centímetros cúbicos
de um líquido de
cor verde
(alguma esmeralda
derretida?);
a mucosa estomacal
(Cova de Raposas,
Portugal)
entretinha algumas
sufusões
sanguíneas;
nos intestinos,
negra era a cor da
serosa do cego,
o que de dia me
pareceu que correspondia
a infiltração
sanguínea em reabsorção;
e no pâncreas,
congestão;
cem gramas pesava
tal acabado pâncreas,
menos cinquenta do
que os do baço,
cuja polpa era
difluente
e que mostrava,
baçamente,
cicatrizes
transversais na face externa;
oito gramas cada
uma, eram graves
as glândulas
supra-renais direita e esquerda,
ambas com medular
em desagregação;
de Heitor o rim
esquerdo,
valendo cento e
cinquenta gramas,
pesava mais vinte
do que o direito,
demonstrando ambos
lisa superfície exterior,
descapsulação fácil
e
palidez moderada
(como pálida e
moderadamente
todos,
enfim,
somos
e
vamos
sendo);
estava-lhe vazia, e
vã agora, a
bexiga;
bacia, coluna
vertebral, medula e
membros superiores
sem sinais de
fractura;
mas no
terço inferior da
tíbia e do perónio
direitos,
sim,
havia.
Mais e ainda
recorri a
EXAMES LABORATORIAIS,
que
histopatologicamente analisaram
estes versos e
fragmentos de
pulmões e fígado
de Heitor,
de Petrónio como de
Carminda
o único
Filho.
Do que
anatomopatologicamente diagnostico:
quanto ao
HÁBITO EXTERNO,
equimoses na cabeça
e membros,
cicatrizes na
cabeça, tronco e membros
e
feridas contusas
separadas na perna;
quanto ao
HÁBITO INTERNO,
lesões traumáticas
meningo-encefálicas, a saber:
focos de contusão
cerebrais,
hematomas
intracerebrais,
edema cerebral
e
hemorragias
subdural e subaracnoideia;
as lesões
traumáticas torácicas eram
calos ósseos nas
costelas esquerdas;
as idem idem
abdominais eram
cicatrizes no baço
e
zonas de sanguínea
infiltração
em reabsorção
no mesentério,
no epíplon
e na serosa do
cego;
mais lesões
traumáticas, dos membros agora,
a fractura dos
ossos da perna direita;
o triste todo foi
complicado por
broncopneumonia com
alveolite supurada
e por
síndrome de
insuficiência respiratória
com alveolite
edematosa e
microtromboses
septais;
o estudo
histológico revelou,
no fígado,
congestão
sinusoidal
e,
no pulmão,
broncopneumonia
severa direita, com
supuração
enobrônquica e bronquiolar e
microabcessos
paraquimatosos.
Fui ao funeral de
Heitor.
Era de manhã e
chovia.
Era de manhã, mas
era a Noite.
E, como no Fado – e nunca mais
se fez Dia.
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