© L.S. LOWRY
Coming from the Mill
(…)
Isto de viver, não parece mas é
maravilhoso, é. Como não s’ria
estar vivo em sequência duma história
insana, humana, d’homem c’uma mulher?
Rosa-se um lume ali de pederneira,
ali arde a lareira do nosso lar.
Lá frio faz o fora, à maneira
de consolações que ficaram por dar.
Toma e respira-o, este é o meu corpo.
É tudo quanto sou, mais o caderno.
Uma soma de nada, concerteza.
Corpo: cor do pó, pó do corpo-a-corpo.
Entrudo do que estou em pleno inverno,
deixa tome lugar à tua mesa.
(…)
Caminhos de cabras humílimos na alba fria,
vidraças adamascadas da respiração dos
mortos,
coisas que a polícia jamais conseguiria
escrever por dextras linhas e advérbios
tortos;
lances de pura fruta no Algarve, fresca a
vida,
retorno pela cálida Évora em pleno Agosto;
o tempero com o cru alho da batata cozida
e o outono da vida a contragosto.
As bolachitas idas comprar à senhora Luísa.
(De que precisa o Menino, de que precisa?)
E aquele seu/teu ar de buganvília.
– Daquelas bolachas, minha Senhora, sô
Luísa.
Ele nem sabe que lhas levo, nem precisa.
Sou eu dele a família – e Lucília.
(…)
Sulquei as noites de Lisboa mercê de uma solidão
à bolina.
O poderoso Rio fazia-se Mar à vista pânica.
Muito pedestrei eu por aquela antiguidade
toda.
Mas era o regresso a Coimbra o que me
(co)movia.
Estes tantos anos depois, ainda enxugo nos
ossos esse frio.
Falo da desertificação humana da grande
metrópole.
O que cirandei, está cirandado: sem dor nem
alegria.
É um tempo arquivado: pronto para o bolor.
*
Que crimes ocorrem onde neste instante? –
à sombra mo pergunto eu do sol novembrino.
Acontece todo ao tempo mesmo um dia bonito,
a Cidade pasta a ração de luz que lhe coube
em sorte.
Águas frescas revoluteiam sem cárcere pela
terra,
os animais inclúem as gentes em sua
inocência.
É bom estar vivo na contemporaneidade dos
jardins,
ver as senhoras que passam ao destino da
hora.
Sem pressa ou lentidão, a vida presta-se
fiança.
Figuras de pedra referenciam a presença
humana.
Quem de casa casaco trouxe, agora o tira,
à passagem pela praça encalmada de pombas.
Pórticos e umbrais encerram frescas as
sombras
que o corpo de luz saturado vem pedir às portas
como um pobre, que o é deveras.
Uma mulher grande e harmoniosa passa além,
dela o porte é de uma autoridade de égua
saciada.
Deste lado, plantas bem tratadas miram a
verde o céu azul.
Aqui, nem outro crime nem qualquer
inocência
que a de existir tão pouco, tanto
resistindo embora.
Púberes gargalhadas realejam de banda do
jardim,
cães pianolam suas árias por áreas deles
só.
Isto era o futuro: um presente estancado
pela Língua,
pela Norma, pelo Castelo e pelo Lis.
E o instante chega a parecer-se com ser
feliz.
(…)
(Coisas que só
posso ter se as escrever:)
Um rio só de
pássaros, fazendo-se água o vento.
Algumas mulheres
entre campos grande e pequeno.
Uns poucos
instantes entre pessoas boas para sempre.
A monarquia do
coração mais absolutistas sem dor.
Um cálice de âmbar
sustendo um fruto líquido.
A tundra do desejo
tocada a taigas voluptuosas.
Uma braçada de
rosas.
E um viver não tão
parênteses de si mesmo.
Uma gramática
corada como uma rapariga sã.
O refresco da
hospedaria branca a meão deserto.
A língua adoçada
pela fidelidade dos cães.
E uma campânula de
cristal para guardar versos.
*
Este é o jogo, todo
o lado é dele salão: ser vivo.
Os falatórios
envolvem as pessoas todas entre grades.
O arcabuzeiro e o
nefelibata contam no rol.
O bufarinheiro e o
da oficin’auto também.
O doentinho da
tísica e a mulher astrofísica também.
Este é o jogo, ser
e estar vivo é jogar.
Entendo isto como
negociação entre volúpia e necessidades.
Ter prazer sempre
não pode ser.
Perceber a
insolência da matéria não pode ser.
Os rit(m)os fazem
parte, mas são apenas fraquezas.
A força reside na
força, não na farsa.
Não é lídimo
ignorar as apreensões do Luís.
Não é curial
amanhecer na vã esperança.
Chamo-me Isaías
Meira, vivi 44 anos.
Acabo de morrer num
despiste-auto.
Eu ia no
lugar-do-morto.
Em Subportela
(Viana do Castelo).
Sou um homem de 36
anos, morri de mota.
Em Maçã (Sesimbra).
Ou sou outro homem
de outros 26 anos de outra mota.
No Cabo da Roca
(Sintra).
Ou tenho masculinos
e pistoleiros 60 anos:
encarcerado na
viatura, recebo a tiros os bombeiros.
Em São Bartolomeu
de Messines (Silves).
Sou um velho de não
contados anos.
Estou trucidado
pelo Alfa Pendular.
Na Póvoa de Santa
Iria (Vila Franca de Xira).
Sou um homem de 45
anos.
Colheu-me o
InterCidades.
Em (Estarreja).
Sou a soprano
Montserrat Figueras.
Era (sê-lo-ei
ainda?) a mulher de Jordi Savall.
Morro a 22 de
Novembro de 2011.
Não sou Herbert
Cukurs.
Não sou Jack the
Ripper.
Não sou Francis
Tumblety.
Não sou Mary
Pearcey.
Sou o da nódoa já
seca de sopa no peito da camisola.
Não toco nos Mott
the Hoople.
Não sou Dave Essex.
Não sou Ken Booth.
Não sou Mary
Cassatt.
Sou um dos cinco
feridos do despiste da EN 232.
Em Cativelos
(Gouveia), Portugal outra vez.
Sou um dos frangos
carbonizados no incêndio do aviário.
Em Lamas (Cadaval).
Sou o gajo de 41
anos que morre em queda de escadas.
Na festa que houve
em (Marco de Canaveses).
Não sou o dono do
BMW ardido em particular garagem.
Em Fraião (Braga).
Não sou o
cozinheiro que cozinhava na cozinha ardida.
Em um restaurante
de Massarelos (Porto).
Não sou um dos
jovens que treinavam no campo.
Nem sou um dos
ladrões dos cabos em cobre.
Não contribuí para
o apagão da Associação Juvenil.
Em Nespereira
(Guimarães).
Não sou a defunta
avó do neto que subornou o coveiro.
Os meus ossos não
foram confundidos burocraticamente.
Não ainda.
Não estou, não
ainda, trocado de ossário.
Percebo que o meu
eventual neto subornasse.
O coveiro.
Por cem euros.
Em Alverca.
Chamo-me Dolores da
Rocha, tenho 71 anos.
Em o espaço-tempo
de um ano, duas vezes assaltada em casa.
Da primeira vez, o
meu marido estava.
Estava e tinha.
Caçadeira.
Game Over, portanto.
Da segunda, não
estava.
Voltaram-me os
mesmos: duas mulheres e um homem.
Se assim lhe(s)
posso chamar.
Em Paços de Gaiolo
(Marco de Canaveses).
Sou Vítor Moreira,
tenho 43 anos e ferimentos ligeiros.
A minha Nissan
5metrou-s’abaixo uma ravina.
No Freixo de Baixo
(Amarante).
Chamo-me e não me
sei.
Sou um dos quatro
feridos graves do choque frontal.
Entre ligeiro e
carrinha de caix’ aberta.
Em Ventoselo (Mogadouro).
Morávamos no
barracão que nos era casa.
Ardeu todo, não
sabem porquê nem por quem.
Na Fonte Santa (que
é da freguesia de Évora de Alcobaça, Alcobaça).
Sou um dos
engenhosos e de desonesto estudo.
Assaltamos
residências estudadas.
Na mesma rua onde
dorme o primeiro-ministro.
Não deixamos sinais
de arrombamento.
À saída, deixamos
tudo no-trinco-num-brinco.
Somos poetas:
conhecemos a(s) rotina(s).
Em Milharada
(Massamá, Sintra).
Sou do Peso da
Régua, o meu município
substitui árvores.
Este é o meu País,
joga comigo a ele, vem.
(…)
Ninguém vai querer
saber se és uma repórter
no
jogo-grande-da-jornada do país-fluvial.
Nem se do carro
tens problemas no cárter.
Nem se és nada em
Portugal.
Toda a lusa pessoa
é aliás nada em Portugal.
*
Um toque de etérea
seda toca a senhora em sono.
O sono é seda; a
intimidade, muita, que a tange.
O mor do amor da
vida é ser’estar longe.
Um tom de
sede-bronze toca a seda em sino.
Dorme em branco, a
repousada. Não a virão
buscar, não já este
verão ou em outro.
A égua dorme
sonhando o garanhão.
Casa(la)mento
anterior fê-la dar potro.
Ó triste
seda-sede-sono-sina de descasalados!
Ó impropéria
interjeição a mais ditonga!
Isto é festim de
espigos escamisados!
Isto é – só pode
ser – cerveja da Vialonga!
Mas ela dorme.
Inerme, lh’a derme quási soluça.
Schiu! Fora ’stá
frio. Ninguém fale! Ninguém tussa!
*
Aos pós-cinquentões
proporcionam agora
passeios mui
pedonais por campos fora.
A um desses aderi
em um domingo branco,
a que fui de
sapatilhas (embora manco).
Vinha-se d’além
Ribeira de Santo Amaro,
claro era o
domingo, claro e preclaro.
Par da senhora eu
era, inscrito e pago:
e isto digo em
rima, é do não ser gago.
Passandámos.
Ribeira ao lado. Fresco tule.
Ao alto, o
campanário céu em seda azul.
Cuidado, que sexagenários
tropeções!
Cuidado, que
sonetos são 14imaginações!
Deram-nos almoço.
Trataram-nos bem.
Só mui gostara ter
a isto trazido a minha Mãe.
*
Não se pode pedir,
pedinte não se pode ser.
Há uma fracção de
segundo instauradora do futuro.
O duro é tudo tanto
se parecer
com o que ser podia
– sim, isso é duro.
(…)
Comprei ontem duas embalagens de
tinta-permanente para a caneta que me deu, há já uns anos bons, a rapariga
Feliciano.
Sou feliz –
cadernos a estalar de novos, o perfume profuso do papel, a invencível beleza do
lápis, a esperança das marcas, o optimismo das tintas, os livros de colorir, as
afiadeiras, a bonomia gorducha e mordível das borrachas, os aparatos técnicos
para arquitectos & projectistas, os posters do Che & dos Pink Floyd ao
vivo, as largas resmas das cartolinas, as cigarreiras de prata & âmbar, as
canecas garridas como mulheres do Minho, os estiradores meditabundos, os
candeeiros direccionais para escrivaninha, os maços de tabaco muito
arrumadinhos como soldados em parada de Juramento-da-Bandeira, os cachimbos de
Magritte & Maigret, as robustas caixas com robustos maços de papel A4, a
alegria apopléctica do papel colorido (açafrão, pimenta, galáxia,
castanho-António-Sérgio, azul-Raul-Brandão, amarelo-canário, verde-palmeira,
cinzento-coelho, encarnado-touro).
Sim, sou feliz nas
papelarias. Dura pouco, como toda a felicidade – mais a mais, em ano de morte
de Mãe.
(…)
Converso-te devagar
à beira-Rio, eu sozinho,
coisas que de casa
trago sonhadas e maldormidas.
Assisto à geografia
nacional, que é bonita
como uma noiva bem
entregue a seu rapaz.
Converto-te,
também, ao maná da terra humana
cujos cavadores são
seminais como grandes poetas.
Assim procedo mercê
de versos, esses meus filhos
tintos ao papel da
minha vida atirados.
Estive um ano e tal
sozinho em Coimbra.
Vivia num quarto,
esperava a morte da Mãe.
Tudo chega – e nada
é bastante.
A morte dela
chegou, entreguei o quarto à senhoria.
Não te já firo nem
prefiro, profiro-te sim tão-só.
Tão só eu era nesse
ano outonal de Coimbra,
que os pássaros
municipais me suspeitavam
o ázimo pão dos
meus cadernos-em-passos.
Perambulei muito,
terminal muito, esse ano e pico.
Voei depois para
estoutro êxodo diásporo.
Nada espero no
outono da minha vida
senão dizer-te,
rio, à beira-Devagar.
(…)
Rostro dizia, por rosto, mestre Fernão Lopes.
Tenho defronte os
papéis que dele ele nos legou.
Afortunada herança,
a nossa, que dele.
O povo às vezes
povo, populaça outras.
É uma das minhas
medusas, tal mestre.
Bernardim, outra.
Correia Garção. Filinto
Elísio. Rodrigues
Lobo. Roiz de Castelo, João,
Branco. Codax,
Martim. E Raul Brandão.
Moira, por morra,
dava presente conjuntivo
o mestre Fernão.
Não, Fernão não: Fersim.
Cronista
invencível, que Maria Ema
Tarracha Ferreira,
aliás, designou merecedor
do mais franco e
insuspeito elogio oriundo
de um tal
&ncerto poeta inglês, Southey,
que recito:
“the best cronicler
of any age or nation”.
Uma
massa-de-frango, um arroz-de-ervilhas.
Um suave tango. Um
telefonema para as filhas.
Um arrebol
pacífico, um mero eucaliptal.
E uma asa-de-asa,
céus de Portugal.
Fernão, não.
Sim-sim.
(…)
Melhores dias não
virão talvez
salvar-nos da
carestia anunciada
de de borla morrer
e de viver pra nada
a meio da graciosa
desgraça do português
como este-aquele
ali, que pelas esplanadas
pedincha o cêntimo
para a sopa, o tostão pró-pão,
por sua alma de
cristão que é para pão,
pela pobreza da
minha roupa que é prá-sopa,
isto não é que me
comova mas amargura-me,
mais de meia
população vive do ar, que não da terra,
o resto vai a pé a Fátima
ver a boneca, cura-me,
ó Virgem de louça,
da cegueira que nos aterra,
não, melhores dias
não virão,
sabeis,
mas não tarda será
Verão,
vereis.
*
Cresceram duas mãos
de homem
ao cabo dos meus
braços de menino:
vou para velho, não
mais já jovem
– dizem que é fado,
que é destino.
*
Estou aqui sentado
entretido a ser português
ao sol morno e
manso qual leão saciado.
Eu já nunca mais
para sempre vivo outra vez,
é melhor portanto
curtir o banco encontrado.
*
Acaba-se-nos hoje o
mês
O primeiro Novembro
a seguir à vida
da minha Mãe
Não é fácil nem
tenro nem terno
ser um órfão
descriado à beira
do Inverno.
(…)
(Algumas Verdades antes de Partirmos:)
Um dos mais nobres
e humildes e vivos seres do Mediterrâneo é a Oliveira.
A terra resiste à
nossa vida e vive da nossa morte.
A morte e o
nascimento são poliglotas – a vida, não. A vida não – por ser uma palavra só de
uma língua apenas. A vida é a única coisa que podemos obstar à morte. A vida é
para reiterar a terra.
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