45.
CIBERNÉTICO
Leiria, sábado, 12 de Novembro de 2011
O despertar é uma cibernética.
O corpo ainda ali está vivo, afinal.
Os filmes disparam de imediato na câmara.
A câmara filtra o livor (o livro) da alva.
Os móveis estalidam seus ossos enxutos já
de resina.
Os retratos cerram os olhos, que toda a
noite vigiaram o Adormecido.
A flor, grisalha de sede, pede água de cor:
dá-se-lha em mercurial conto.
Confronto do Adormecido com sua intimidade:
humilde, rendido combate.
Só um pouco mais tarde, no Café da Rita, a
contemporaneidade arreganha as fuças: o jornal com os crimes, a velha viúva que
fala com o cão como falava com o seu amado defunto, a fria e obtusa e estúpida
omnipresença do televisor sintonizado na paroquiana venalidade de Portugal, a divorciada
de madeixas cor-de-lata-de-atum-por-dentro que lacra as unhas de
roxo-à-Senhor-dos-Passos, a pasmaceira metafísica do
desempregado-benfica-sporting-porto, as cadeiras de alumínio que parecem
esqueletos sentados, um caixeiro reformado que indignadamente profere o
primeiro foda-se público em quarenta
e seis anos de uma vida-de-trabalho, a brasileira telemobilista varejando o ar
de epígrafes de telenovela, a pandórica profusão dos crimes do jornal, a saber,
vandalismos em cemitérios, furtos, violações rurais, rixas de bairro social,
ganga de gangs, escravatura apanha-morangos Celorico-da-Beira-Espanha,
pedofilias em família e fora dela, assassínios conjugais – ex-conjugais – e
derivados, corrupção por adjudicação de ajuste directo, fraudes fiduciárias,
resguardo e porte vaginal de droga em visitas prisionais, atropelamentos de
infantes e de geronto-seres em passadeiras, despedimentos colectivos ao arrepio
da lei laboral, habilitações académicas mais postiças do que o sorriso do Papa,
filosofias francesas para-inglês-ver, futebóleo, tristíssimos corrupios da
pública gestão, hospitais psiquiátricos públicos para erecção de condomínios
privadíssimos, rios de suinícola asfixia, taxação-zero das macrofortunas
patrimoniais, desumanização do investimento e investimento na desumanização,
(cobrança automática nas portagens, caixas automáticas nos hipermercados),
estrangulamento da agricultura, esgana epitelial das pescas, angolização da
Madeira, moçambicação dos Açores e timorlestização do Continente, paneleiros
cor-de-rosa de braço-dado a têvêputas cor-de-açafrão, mas o despertar é uma
cibernética, pelo que
Por uma mordaça de açucenas te sou verbal
gladíolo, minha querida, hoje que já não chove – ou não ainda.
Por toda a casa se cultiva o tugúrio do pão
e dos versos.
Na rua, um cão dourado fareja a castanha
anal de outro, que espera, em alardo o mais continente, o fim da surtida.
Sou feliz assim, minha querida.
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