Pombal, 18 e 19 de Maio de 2009
I
A luz melhora o mundo como um sabão, estou atento.
Um homem de rosto muito lavado, os olhos muito azuis, folheia a agenda pessoal, a anca encostada a um carro na rua.
A existência deflagra como uma granada óptica, toda simultânea na necessidade.
Isto é tudo ver.
Entram no pensamento acontecimentos como fruta, mosca, guardanapo, máquina de fazer contas.
Na noite prévia, senti o rumor de máquinas urdindo a noite mesma.
Trabalhavam com obstinação, prolongavam o tempo atento.
Revolvi-me na cama como um churrasco morno.
Tinha corrido uma parte do mundo, deixado um texto, fora à varanda conferir a camélia, a rosa, o alguidar abandonado pelo jardineiro.
Dentro da casa, a livraria murmurava a espera, os amanhãs datados da leitura que tira o ser do estar.
Agora, os espelhos rápidos fulguram a manhã.
Acontecem velhices ortopédicas nas passadeiras, sombras de chapéu, itens de caderneta, bustos da paulatina necrologia.
Homem de camisa branca com saco plástico verde.
Baldio urbano pintalgado de papoilas, além de que um canavial breve.
Considerar tudo isto como um plano inalienável da Essência.
Na atenção, retornar tudo para dentro: aumentar a História de atributos notáveis e notados e anotados.
Por exemplo: se em Coimbra, da Couraça de Lisboa apreender as linhas que são Santa Clara: mais tarde, referir isso numa conversa ou num poema.
Os vendedores de alimentícios instauram os patamares do dia, visitam pontos vivos no mapa, renovam as existências (o termo não é inocente, é superlativo, é metonímico).
Ramifico-me.
Sem o susto supersticioso da morte, sem outra bagagem que a viagem mesma: travessia e rio trocando essências e identidade(s). (Neste sentido, trabalho a verdade possível em demanda das Leis.)
Não negar a atomicidade pessoal. Saber-se elo do involuntariado, do maquinismo extenso e indivisível. Assistir à vida ávida das mãos. E chamar cegueira à dor como ao prazer.
Ao cabo do corpo, a doença terminal (um dia), processo de refundição e de refundação da matéria. Antes, o durante(s), vórtice e vértice de planos do Tempo, fábrica de linhas.
Agora, a tarde como uma veterania. Pousio e moção, crescimento para o país da noite.
Áscuas: pirotecnia da força de dentro, combustão de carbonos, percepção do Plano-Nenhum da Natureza.
A força de dentro para cima.
Genealogia e arborescência.
Entre-ter as coisas, ser uma delas: entre-ser.
Absorção, digestão, evacuação: processo em obra.
II
Em obra: memória da terminação de Joaquim Agostinho, em 1984, por hematoma epidural, e da de Bento de Espinosa, em 1677, por colapso respiratório. Duas idas vidas vindas, duas velhas glórias repescáveis no contente e medíocre dia-a-dia, esta, por exemplo, terça-feira de 2009.
Não ácida mas placidamente, no curso da manhã, retomando os desenhos de Leal da Câmara (que Aquilino biografou) para A Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro: para reconsiderar a sempre actual urgência de anticlericalismo, de combate mortífero à superstição irracional cuja exploração é o pão-da-boca das instituições desumanizantes (os vaticanos, as mecas, as putas que nos querem parir). Placidamente isto, perto da igreja local.
Rio e rito: uma geminação.
Sim, conto com o mau destino de Adriaan Koerbagh e com as demissões de Casimire Périer e de António de Spínola – não esquecendo os irmãos de Witt nem o bebé de Lindbergh. História de histórias, peões do magno tabuleiro que a Língua move nos sentidos necessários. Não sinto obscurantismo nisto, mas uma bela claridade pensativa para além, quase-quase, do corpo.
E assim os nossos corpos servem de contrafortes à serra da manhã. Vivos, mexendo-se, queimando ar para incandescência das células, somos corpos que desenvolvem a trama terra-cósmica: bichos do dote, ervilhas do cesto, peixes rituais que nadam o ser.
Assim vogo em evidência: sinto claramente, colecciono sem leccionar, apre(e)ndo sem pressa nem vagar. Esta manhã, muito cedo, dei por mim emergindo disso a que chamamos sono – e que é a máquina poupando na conta da luz. De imediato, achei-me pronto à defenestração dos lixos benignos que empatam a tremenda soliloquacidade. Tão depressa me surgia possível a ingestão (absorção, digestão, evacuação) de bolachas molhadas em café-com-leite como a escolha entre cursos e percursos paginados pela escrita dos antepassados. Fora da casa, além-quintal, botes e caravelas de chapa e borracha eram outros tantos destinos automóveis rumo à repartição, à padaria, a Leiria, ao estádio, a Portalegre e ao futuro cativo do mesmo dia inaugural. Já tinha morrido um tal Mario Benedetti, poeta uruguaio de que muitos gostam e muitos não. Já tinha nascido algum botão de carne em Coimbra, em Bagdad. Cães urbanos pontuavam ruas de Soure, certamente que sim. Fumei antes do banho, repeti as calças da véspera e saí a conferir as existências que são, deveras são, o meu presépio, o meu circo, a minha pena e o meu encanto.
E o assassínio do presidente Carnot em Lyon deu-se outra vez, a páginas tantas, à passagem pela fachada da Cooperativa Agrícola, um pouco antes do modesto Rio Arunca.
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