Fala o da voz que não chega ao céu
Uma
senhora da minha terra colecciona presépios. Consta que já juntou coisa de um
quarto-de-milhar deles. Serão, pois, cerca de 250 vaquinhas. É muito corninho
de barro. O mais curioso, no entanto, não é tanta vaquinha junta – isso em
qualquer casa-de-alterne se caça por trinta aéreos
ou nos pinhais por quinze. O mais curioso é ser só um burrinho. Um só. 250
Meninos-Jesus. 250 Sãos-Josés. 250 Nossas-Senhoras. 750 Reis-Magos. Mas só um
orelhas-de-feltro.
Como
em tempos andei disfarçado de repórter, deu-me para breve retorno a essa
prática inquiridora que é o fel-de-boca dos autarcas mais fraquitos & o
desassossego dos menos. Fui-me (por assim dizer) à senhora e zingas!,
inquiri-a. Para amnésia futura, aqui fica a acta oratória da dita
entrevis(i)ta(ção):
–
Olá, ti’ Maria!
–
Olá, ti’ Coiso!
–
Atão só um burrinho a modos que proquê?
–
Proq’ foi o único suficientemente pa’ mim.
–
Suficientemente pa’ si o quê?
–
Suficientemente burro, menino.
–
Menino?
–
Jesus…
–
Ah.
–
Os maiores m’stérios às vezes num custam nada.
–
Tou a ber.
–
Num sei se tá.
–
Faz-m’um bocado ’spé’ce ser só um.
–
É quanto me chega. Quanto mais burro, mais zurro.
–
Atão e com’é q’a senhora faz quand’a chamam pa’xposições & assim?
–
Bou.
–
Num é isso. Não a chagam por ser só um burro?
–
Não, nadinha. Dão-me mazé munta binho-do-Porto & trouxas-d’obos como à
Josefa d’Óbidos dita pelo Mário Viegas.
–
E as vaquinhas?
–
Tamãe bêm muntas.
–
Num é essas, é as de barro.
–
Essas num tugem nem mugem.
–
Proqu’é q’ não?
–
Por respeito ao senhor.
–
A mim?
–
Não: ao senhor burrinho.
–
Tou a ber.
–
Num sei se tá. Ao Senhor, burrinho.
–
Acha a s’nhora que s’eu puser isto no jornal as pessoas ficam a pontos
que’sclarecidas?
–
Num m’aq’enta nem m’arrefenta.
–
Mazé q’eu preciso d’escrabêr coisa assim tipo sentimentos-de-natal, ó ti’
Maria…
–
Acontece munto, ó ti’ Coiso.
–
O q’é q’acontece munto?
–
O Natal. E os burrinhos q’ind’acreditam nele.
–
Diga-m’agora cá, faxabôr: o q’é q’a s’nhora a modos que colecciona nos outros
onze meses do ano?
–
Barizes.
–
Tou a ber.
–
Não tá mazeu amostro-l’e.
–
Sou casado, ó ti’ Maria.
–
Burrinho…
E
pronto, era isto. Para a semana, conto entrevistar outra Maria – a de
Belém-népias. Esta já tá.
– Num sei se tá.
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