© DA, 6 de Abril de 2012
36. AS EVIDÊNCIAS
Leiria e Pombal, quarta-feira, 19 de
Outubro de 2011
Vinha
pela Rua de S. Francisco a considerar a evidência de toda a gente acabar por se
fundir nas consequências das escolhas que fez. Ou seja: que toda a gente acaba
por acabar. Havia nisto, é claro, um torrão mínimo de amargura, como a da pedra
de sal que se põe sob a língua para obstar ao tremor nervoso das pálpebras.
Na
Rua da Rodoviária, era aceitável outra evidência, precisamente a de pensar
tanto em evidências sem saber nem por nem para quê.
Subido
à colina, o Castelo parecia um leão pacato com janelas. Mas não eram janelas,
aqueles olhos que um remo(r)to arquitecto medieval abrira.
Perto
do Jardim-Parque, contentava usufruir da frescura solar da manhã de Outubro.
Agosto fora frio e agreste; Setembro, abrasador; e a primeira quinzena de
Outubro batera recordes de temperatura com muitas décadas. A meteorologia
certinha da infância tinha acabado para sempre. E isso era também a pedrita de
sal sublingual.
Uma
das esplanadas da Praça do Pastor Peregrino serviria para esperar. A carreira
para Sicó mais próxima estava marcada para as 12h15m. Nada a fazer senão
esperar – e esperar era também uma escolha, uma consequência, uma coisa em que
se acaba por, não que se acaba de.
Um
casal de adolescentes tardios pastava coca-colas na mesa em frente. Ela, com
uma t-shirt em inglês; ele, com a nuca muito rapada. Um reformado de sapatilhas
passou com um saco de plástico cujas bossas deixavam perceber a presença de uma
lata de salsichas, do Borda d’Água para o ano seguinte (se o houvesse, para ele
como para toda a gente), de uma embalagem de vinho branco de cozinha e de uma
escova para sapatos: despojos pobres, outonais, sem esperança nem remédio.
A
hora remanescente vinha e ia-se devagar, mas não sem a qualidade voraz de todas
as horas de todas as vidas, sobretudo das que escaparam já à eternidade
insolúvel da mocidade.
A
ex-adolescente que falava inglês com as mamas abriu um portátil, digitou a
senha da rede social e entrou nesse paraíso artificial deste tempo. O da nuca
glabra bocejava ante uma revista de actividades ditas radicais.
Não
era fácil e nada parecia difícil. Era um escoamento colectivo (outra
evidência.)
A
praça tinha árvores sem um rastilho de pássaros. E faltavam vinte minutos para
a carreira – e isto era tudo quanto podia contar-se com. Só vinte minutos? Ou
ainda vinte minutos?
Da
Sé, o som éreo e aéreo e venerando, que não venéreo, dos sinos veio pautar a
letargia quase aldeã da cidade de partida. Não são todas de partida, as
cidades? Considerar isto em trânsito, a bordo já do autocarro, parecia possível
e, até, quase útil – só que poucas das coisas possíveis são úteis, tal como
poucas das úteis são possíveis.
Óculos
no sítio certo da cabeça, cigarro na mão correcta (a esquerda), camisola sem
nada para se ler e as praças e as ruas e a estrada e as aldeias esforçando-se
por ser legíveis.
As
florestas têm uma qualidade geológica: talvez porque as árvores queiram vir a
ser pedra, não cinza. De modo que as cidades são talvez florestas que
finalmente lograram ser pedra, antes de acabarem, como tudo e como a gente, por
ser cinza.
(NB: estas linhas
de ontem – entrada 36 – decidiram adquirir autonomia, pelo que passarão a
integrar um caderno à parte, intitulado – talvez – AS EVIDÊNCIAS
LEGENDADAS.)
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