30.
Leiria, terça-feira, 4 de Outubro de 2011
(O texto seguinte saiu como crónica – Rosário Breve n.º 227 – no semanário O Ribatejo, edição de 6 de Outubro de 2011:)
NATUREZA-VIVA
Ela aproxima dele a boca dela, que é de uma frescura húmida de bivalve. Beija-lhe, lentíssima, a vista direita, depois a outra, depois, mui célere, a testa, as rosas do rosto, o queixo, a garganta e o peito, em que lateja o cachorro grato do coração. Um ricto de volúpia freme os lábios dele, o beijado.
Isto passa-se manhã muito cedo, na paragem que espera o primeiro autocarro do dia. A recatada distância, sou todo de uma atenção munida de discreta dioptria periférica. Estamos ali os três, mas eles são dois só que só são um (do outro). À beira do meu primeiro meio século de idade, conformo-me com a naturalidade de tanta tão amorosa mocidade, alheia embora ao meu corpo redactor, me encantar tão sem apelo e com tanto agravo.
O corpo dela é da mesma substância do olhar com que ela olha: espécie de água colorida daquele castanho refractário próprio dos pardais e dos outonos que douram tanto a espera quanto a demanda. Ela emana um perfume hipnótico, que vos tento fazer sentir chamando-lhe éter lácteo.
O corpo dele é presidido por um rosto inimputável, de que são adjuntas a boca sem jurisprudência e as mãos pesquisadoras do ouro branco do colo dela, onde a alvura apertou o lenço da neve.
Estão eles naquela mútua adoração – e o autocarro que, felizmente, não chega. Sinto-me bem: do outro lado da rua, uma vivenda cercada de rosas viço-variega explosões quietas em fragrância; um cão deitado pensa no castelo da colina, onde outrora cadelas-infantas exerceram os alvarás do mais régio cio; e eu sinto-me bem, perto destes dois que se amam sem horário a favor da mútua (a)do(r)ação.
O autocarro chega, eles embarcam, eu não, decido ir a pé, chego tarde aonde me esperavam.
– Então, perdeste o autocarro ou quê? – atira-me o Chefe.
– Quê – respondo eu. E esclareço:
– Estive na paragem do autocarro a ver a jovem mãe com o filho ao colo.
*
As figuras dos sonhos pedem-me vida no dia seguinte à noite dormida. Tento não esquecê-las, quando tão gentis, quando tão sozinhas me chegaram à cadaveresca imitação de adormecido.
Elas são madeira na combustão do que pens’into. Farrapos de manhã esfiapam-se porém breves: e elas dissolvem-se na finura (fineza nem sempre) do ar novo.
Quando chego ao Café para anotar as circunvoluções cerebrais, o mais anotado são vilosidades intestinais: esta coisa do corpo se querer vivo contra tudo a favor de todos
os gatos
os cães
os retratos que na casa perduram gentis mortos
os naperons
as pagelas histórico-literárias
a taça com flocos de mel que a menina deixou
o Inverno de 1929 quando o meu Pai
a Primavera seguinte em que a minha Mãe
os periquitos
os pardais
os vizinhos
os Estados Unidos da América da Morte
a Dona Susana sozinha em casa
o Terreiro do Paço arquitectando a luz do Rio
o meu País que já só em sonho.
*
(Pedras)
Atiro pedras que são versos
à água concêntrica da atenção.
Nem tudo me corre bem,
coisas há que me param.
Far-me-á um dia o coração
o mesmo, disso estou certo,
olha o Olímpio Ferreira.
Não, nem tudo me morre bem.
*
(Beiras)
Das beiras pluviais vem o recado da passagem,
a imagem é corredora mas quieta, se uma pessoa
(se) permitir ao mundo a agência noticiosa
que consiste na árvore, no caixeiro e na rosa.
*
(Genealogia)
Duas quatro oito mãos / iguais a estas /
oito quatro duas / uma que escreve: /
as dos avós,
as desta voz.
*
Os jogadores de bilhar engendram, nas catacumbas do café, a pool da perseguição. Ouço deles o vozear, que compenetra o salão onde reinvento a sobrevivência, a-todo-o-custo-tusto.
Algumas moedas no bolso, Outubro vem vindo quente como um orgasmo de luz esbraseante.
A mulher de blusa cor-de-tangerina vem pedir duas pedras de gelo, a levar num copo de plástico. Ligeira curiosidade:
– O teu menino aleijou-se?
– Não, é para outros efeitos.
*
Homens-mulheres descem a Costa, vão ao Campo
recolher da terra os produtos verdes.
Isto passa-se na minha infância-distância,
mais ainda os vejo, admiro ainda esses matrimónios
de botas de borracha que descem a Costa, que descem sempre
mas sempre voltam,
ao contrário da distante infância.
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