© DA, entre Leiria e o Louriçal, 6 de Abril de 2012
26. PEREGRINAÇÃO VOLÁTIL
Leiria, quarta-feira, 21 de Setembro de 2011
Manhã cedo, lavei-me bem e devagar, tomei um caldo e vim para a rua conquistar o mundo.
Não está o calorão de ontem, felizmente. As asas das pombas, revoando, refrescam a luz. Longe, em Chaves, explodiram a gás uma caixa de multibanco. A minha ourivesaria (o Dia) está porém a salvo. Entre mim e as coisas há uma espécie de peregrinação volátil. Digo-o assim porque não posso (ou antes: não quero, prefiro não) dizê-lo de outra maneira.
Aquele homem de carão vermelho tem sono. Rotundo, digestivo: parece um padre-cura dos antigos – ou um réptil saciado.
Tempestades e copos de água: o País vive a crise financeira da selvajaria hipercapitalista. Aldeias e casais mínimos estão sonolentos como aquele homem de há pouco. A paramiloidose vai estrangulando cidadãos em silêncio. Além, um polícia multa naves estacionadas para além da hora marcada no talão.
Deixo que a mente me desfi(l)e imagens de um fascínio tranquilo: uma quinta às portas ígneas do Outono, por ela o ciciar (cegarregas, açucenas) da acalmação, o panasco fulvo, o funcho e o espargo, a quietação refrigéria da almácega, o ar pensativo e pernalta do catavento, a cal da capela nas faces da casa do caseiro.
O eu-corpo: vivo-me nele, concedo-lhe-me domínios na especulação, na geografia, na política, na criminologia (de que a poesia é exemplo, por exemplo), na praia mineral do olhar peregrinando volatilmente pelas coisas. Consulto as pombas e os pardais em confirmação da naturalidade da minha natureza. Vicissitude de vicissitudes (como toda a gente), sou o extracto dos humores de um homem combinados com os de uma mulher. Que ambos estejam mortos – não extenua a minha vitalidade, antes a tonifica, sublinha, dirige, manda voar.
Pastamos feijão, batata, peixe, grão, farinha, vinho, gorduras fumadas ao relento do lar. Redigimos poemas que raspam o céu da noite, lá onde as gambiarras estelares infinitesimam a duração da mensagem que cada um(a) de nós é: mesmo que para ninguém.
O noticiário fala de um cidadão que morreu, não sei onde. Uma gorda do séquito presidencial de uma qualquer república bananeira ladra boas-intenções num cenáculo parecido com a uva-mijona. Os direitos zumanos à ó-nu etc. Merda p’ra ela.
No bornal, palavras e imagens que, antecedendo-me embora, me resultam contemporâneas: Moscovici, Caeiro, Vergílio, Beleval, Vincent Thomas, Camus et alii. Confortam-me ao tempo mesmo que me inquietam: amarguram-me, pois, como me adoçam.
Exactamente (reflicto): o Nada não é a ausência do(s) objecto(s) mas a do sujeito.
(Re)tornar-me-ei nada, bem sei. Mas – enquanto não, refrescar-me-ei de luz melhorada pelas asas que, das aves, confirmam o firmamento e o infinito para lá do apenas-orgânico.
Meia-tarde: 15h27m.
*
(Este é o meu a que pertenço Tempo.)
Um tempo de caixeiros subassalariados e de rios putrefactos.
Um tempo de anémonas e de ar-de-raparigas.
Um tempo de obesos herdeiros e de casais desavindos.
Um tempo de pessegueiros florido açúcar e de arenques.
Um tempo de gestão danosa e de prostituição da rosa.
Um tempo de professorinhas e de andorinhas.
Um tempo de lingotes e de quilates.
Um tempo de mesmo-que-não-me-vivas-e-me-mates.
Um tempo de putas telefónicas e de escutas idem.
Um tempo de homens e de mulheres.
Um tempo de crianças violadas e de destilarias da gramática.
Um tempo de matrimónios rápidos como cometas e de cometas.
Um tempo de ovelhas e de carneiros que não sabem ler ovelhas.
Um tempo de flausinas e de badamecos.
Um tempo de crúzios e de búzios.
(Mas meu e de quem sou, a tempo.)
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