05/04/2012

Rosário Breve nº 253 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 5 de Abril de 2012




Os bois pelos nomes

Uma das minhas manias mais antigas é nomear coisas que não precisam de nome para nada. A nomeação de filhos e de animais domésticos é normal. Mas baptizar coisas decorre de uma pancada clínica ao nível da cabeça. É essa pancada que tenho. Também tenho exemplos, para gozo e ilustração do meu leitor.
Lá em casa, a caneca amarela é a Ivone. Porquê? Porque, a toda a extensão da evidência, é frívola como uma cabeleireira. Só podia ser Ivone. A minha mulher já muitas vezes me apanhou a falar sozinho na cozinha. A princípio, julgou que eu estava ao telemóvel. Não estava. Estava a falar com a Ivone. Quando a nossa gata, que é Dionísia, me vê a falar com a Ivone, engrossa logo o rabo e bufa uma cacofonia lábio-dental começada por FFFês ininterruptos.
As minhas pantufas? São um casal, claro. O casal Capela. A esquerda é a mulher. Chama-se Maria da Purificação. Maria da Purificação Capela, Botelho em solteira. A direita é o Alfredo Tadeu. Alfredo Tadeu Núncio Capela. Ela trabalha em unhas. Ele, em bater solas. Desirmanam-se muito e não cheiram bem, como quase todos os casais, mas o catolicismo pedestre com que as eduquei interdita-lhes o desquite.
E tenho um casaco que quase nunca uso por razões que passo a explicar. É o casaco Silva. Acho que só o usei em casamentos. Sorte minha: os meus amigos e as minhas amigas já não se casam, agora ou se divorciam ou se ajuntam em aparato e regime de pouca-vergonha. E sorte minha porquê? Porque, quando me enfarpelava com o casaco Silva, sofria imediatamente de uma ânsia de condecorar pides: isto era grave, até porque o casaco Silva me fazia chamar-lhe, também, Rosa Casaco. Com aquele vestuário, só me apetecia beijar a careca aboborina do Américo Thomaz e dizer mal do capitão Salgueiro Maia e da liberdade e dos jornalistas ainda não arregimentados e dos reformados pobres e construir vivendas pirosas e sofrer de espasmos esquelético-musculares que me impediam de amar e compreender Camões, Eça e Pessoa.
Há anos que o não visto, há anos que a traça perfura o casaco Silva. Mas ele, não sei como, resiste. Quero dizer: sei. A Ivone vota sempre nele. O casal Capela também. A minha mulher, acho que não.
Mas nisto do vestir, com elas nunca se sabe.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante