Berndnaut Smilde
Nimbus II
Cloud in Room
2012
35. AS HORAS
Leiria, segunda-feira, 17 de Outubro de
2011
Tenho
por vezes horas substantivas como a
matéria
animal dos seres que respiram.
Penso-as
em forma de limbo.
Penso-me
ébano-em-branco, durante elas.
Madeiro-as
para revelar-me árvore.
Aprecio
a voracidade infantil do mundo.
Já
era para ter nascido de outra maneira.
Já
era para ser-de-Florença em qualquer lado.
Um
bosque em França, o rumor de um rio.
Um
patriarca de gatas: tenho sido isso.
Sou
da substância respiratória da luz: e
amável,
amante e galante.
Toco
a febra viva da mulher deitada.
A
vida dela é uma coloratura sideral.
Leiria-se-me
ora a vida – e sumptuoso
é
o sentimento veríssimo que me enaltece
o
estar ’inda vivo sempre que miro o mesmo Castelo,
à
colina mor subido, que José Maria
Eça
de Queiroz viu também (e) antes de nós.
Rapazes
demoram o Verão-de-Outubro
ao
pé da fonte de Porto Lameiro, entre
silhuetas-laranjeiras
e cacos de cerâmica
fabricados
por mãos hoje mortas, amanhã
não
sei.
É
uma gala, assistir à sombra silvestre
de
qualquer das minhas filhas, nas horas.
Como
elas derivam atlanticamente, Santo
Deus!
Como ajuízam elas a gramática carnívora
que
a elas mesmas me levou em láctea
instantânea
entrega, Deus Santo!
Tenho
por vezes mui substantiva pena de
não
acreditar em Deus, meu Pai.
Senhoris
rolas dão saúde aos beirais aldeãos.
Jornais
forram gavetas-do-bacalhau.
Carpinteiros
antigos como o senhor Arnaldo
Fonseca
de Casais do Porto, Louriçal, ministram a seiva,
a
vida das eiras: o milho, o porco, a mulher,
os
filhos, as abóboras, os inocentes utensílios
que
levam ao leite e ao vinho e às décadas
e
a esta folha escritinta por um homem
triste
e horário que os meus nome e rosto
usa.
Uma
faca limpa eu usasse para (a)talhar
a
puta da Morte: sabes, João.
Por
Lisboa demandei as relojoarias vibráteis:
as
putas comedidíssimas do Instituto
Superior
Técnico, os garnizés navalhistas
da
Estefânia, os adormecidos do Cemitério
dos
Prazeres: sabes, Maria João.
Eu
era para ter sido não apenas décadas,
mas
algumas horas.
Clarões
amarelos-palha de medas-mulheres
incensam
de cor a salteada realidade,
acontece-me
muito inscrevê-las sem sensatez
no
usufruto da vida.
José
Maria olhando o Castelo de Leiria,
José
Maria vivo e Eça e de Queiroz.
Os
seres filmando as ruas com os olhares
dos
seres, das horas.
Os
seres trazido-levados pelas horas,
pelo
com que olham.
Eu
queria apenas perfumar a nossa Língua
de
coentros-sextilhas, sabes, Fernando.
Um
restolho de cães-pátios, um ferro de sal,
uma
torneira de brevidades, uma matricial
horda
de medusas feitas da água dos olhos.
(E
eu a escrever isto enquanto a vida
acontece
ao lado, constipada e hirta
e
relojoeira e grave como uma infantilidade:
sabe,
Mãe,
sabe
Deus.)
Filtros
adequam a especiaria das águas
dos
hortos que catolicamente resistem
aos
incêndios mais fulvos e às sopas mais
das
creches conventuais.
Eu
digo ist’assim porquanto o posso:
e
mais não digo.
*
A
flor é uma frase perene.
Cada
flor é uma declaração.
Ser
teneb(rosa) límpido entre flores:
acho
que também elas pensam.
Os
vivos honram os mortos com elas.
Elas
não têm culpa de cheirar a cemitério.
A
gente quer saber se os mortos sonham.
As
flores sonham.
As
flores sonham com eles.
Os
gestos dos mortos rispam a memória.
Escrevem-na
inventadamente.
Estão
evanescentemente na cor aluída das casas.
Não
estou ’inda tão velho, que a maioria do
meu
amor seja (amor)te. Pronto, sim,
é
claro que ressinto e ressumo a calidez
pétrea
de alguns amados, mas isto
curte-se
com música e meia-colher
de
açúcar nas ervilhas guisadas.
E
um copo de qualquer coisa
Atlântica,
na Figueira da Foz ou em Firenze.
As
pessoas da arquitectura são todas músicas
da
pedra.
Ou
então é só porque gostam da alegria
da
mulher, que cresce em seiva
sempre
que lhe garantem uma maçã por
filha.
A
mim, a quem já fizeram o mesmo,
isso
é de uma naturalidade tremenda.
A
flor é verso dito de c(ô)r.
O
amor também é – e toda é dele
a
terra: um pouco de adubo animal,
a
vida não é mais do que uma hora
nem
do que uma fl(ô)r.
*
(Maria
da Graça também Queiroz:)
Ela
nasceu do lado que mostra a lâmina viva do Rio.
Tinhas
sardas logo de começo, o que acontece sempre que há reticências.
Ela
sentia a mudança das estações como literatura viva: a elegia do Outono, a
família do Inverno, o milagre da Primavera, o matrimónio do Verão, sendo ainda
porém Primeiro-de-Maio-de-1971 embora.
Ela
conserva as estantes verdes e os vinil-discos.
Ela
conheceu a brutidade e a gentileza: e fez cartório da segunda.
Ela
administra retábulos chamados filhos como se tivesse nascido para os nascer.
E
nasceu.
(Também)
Graça se chama – não é coincidência.
2 comentários:
Na sexta estrofe há ou não uma gralha ("por vozes" - "por vezes")? De qualquer modo, tudo Excelente, como é aqui gloriosamente fatal.
JJC
Era gralha, sim-senhor. Vozes por vezes. Merci, King.
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