08/03/2010

OCARINAS, VERSOS, UMA CADELA E SÍTIOS

Souto, Louriçal e Pombal, entre a tarde de 6 e a noite de 7 de Março de 2010



1. OCARINAS, CLAC-CLAQUES E SIGA



Em tardes de bom vento como a de hoje, acontece a casca dos eucaliptos aproveitar a corrente para fazer ocarinas. Dão-se-nos então assobios botânicos de encanto certo. Coisas assim são boas por permitirem viver sem pensar sempre o e no mesmo. Longos degraus cultivados em socalco fazem de sobrepostos pianos em terras que só os domingos ermam. A construção civil, infelizmente, é mais estúpida do que a lei prevê: olhai-me aquela vivenda com telhado para a neve e palmeiras de imitação tropical no relvado dianteiro. Ocarinas à maré aérea resgatam-nos disto, porém. A gente sente as ocarinas – e nem combustíveis nem medicamentos nem prestações nem cacas que tais contam ou podem contar para a regular tristura dos deserdados. Em pretéritas poesias (muito gosto eu deste herculanismo: “poesias”, rico plural romântico de artífices de estâncias) vos terei falado já de outros encantos: o clac-claque das mandíbulas das cegonhas, altas e brancas e aerodinâmicas como sonhos de crianças; o fru-fru dos plátanos como subidas saias de senhoras disponíveis por e para o amor; o olimpismo matraquilho das associações recreativas do povo que mora o que pode e um pouco demora caminho do campo-santo;
(E como se nada fosse:



De repente o fremir das asas das aves
voeja frágil cortando o frio ar;
nada espacial torna a casa as naves,
nada nos faz nascer, nada apartar.)



(E como se nada fosse, outra vez em prosa, a liquefacção dos sentidos, poalhas-mortalhas de puídas águas acorrendo aos mares da costa e aos peitos dos navegantes. Normal do homem é querer-se em mulher – anotar isto para depois e seguir.)



2. VERSOS ÍMPARES EM DÓ NATURAL, PARES EM RÉ SUSTENIDO



Este é o segundo dia.
Estou a caminho.
O biscoito, a malvasia.
Um viver só de mansinho.



Um azulejo por boca.
Uma rimação amarga.
Toda a vida, vida pouca.
Pouca roda, muita carga.



Os meus versos são ladrar.
Os meus versos são chapéu.
Um constante desnudar.
Um gritante pôr-se ao léu.



Arrufadas de Coimbra.
Pastelinhos de Tentúgal.
Ansiada hora linda.
Enseada de Setúbal.



Olha a meia laranja doce.
Olha o fio de limão.
Quem será que foi que trouxe
vida e morte ao coração?



Terno bolo dos anitos
que a menina hoje faz:
passam anos juv’elhitos,
passam anos para trás.



As paixões cortam a pele.
O juízo falta faz.
Tem juízo, Daniel,
que os anos passam pa’ trás.



Ó Louriçal,
terra de encanto certo,
com aroma de pinhal,
e do mar, que fica perto,
ó Louriçal,
de profunda tradição,
tu não conheces o mal
e dás bom nome à região.



Uma gota de groselha,
um xarope de astroluz
e uma maçã vermelha
e uma chaga de Jesus.



O convento fica perto,
Dom João foi quem no quis.
Com marfins o Mestre Alberto
o talhou de mel-anis.



Ripa tenra, minha trave,
cadela abandonada.
Um suave riscar d’ave,
Cortázar, Casa Tomada.



Risca-pinga, coração,
aos domingos há mercado.
Tremoços e inflação
e feijão do mais dobrado.



Não me cortes o vinagre
p’ra eu te agradecer,
pois qu’inda há quem emagre-
ça a perdura de viver.



Ó Luísa, ó Gracita,
ó socalcos da má fama,
quem se dá todo à vida,
faz sua mesma má cama.



“Aonde é qu’inda vás?”,
diz a mulher para o homem
carregado de maçãs,
por tolo parv’ o não tomem.



Outro dia, por tristura,
eu corri a ponte olhando
pouca água em amargura
avaria e o Armando



vai assim, “Diz-me daquelas
que um homem nunca diria
às virgens mais amarelas,
baila o Sol Cova da Iria”.



Coração, aeronave
da gare ao ar Montijo:
Pega aqui por onde eu mijo”,
o meu sangue é uma ave.



A derrocada do Brit’Império
derrocou a Palestina.
Um jovem é caso sério,
muito sério, ó menina.



Com a morte é parecida
a vida que aqui se leva.
A treva apaga a vida,
a vida que se atreva



a ser viva viva viva
e uma gota de groselha
etc.
etc.



3. TUDO SÍTIOS



Azinhaga dos Alfinetes, Marvila.
Estrada de Chelas e Rua de Santa Cruz do Castelo.
Elvas e Portalegre.
Coruche e Torres Vedras.
Mirandela e Tovim.
Tudo sítios que o Sol toca e a chuva também.
A Magna Realidade inclui os morituros.
Como nascituros fomos todos, todos morituros somos.
Comédias e desgraças decorrem com toda a normalidade.
Linhas de água escrevem trechos de terreno.
Pessoas entregam-se em cantos sem luz.
Por vezes a vida é um trapo molhado na cara.
Outras vezes leva-nos ela a ver uma barragem, um pinhal furioso como uma cabeleira de maestro vegetal.
Aquele casal está a falar de sítios onde se come lampreia.
Eu gosto de ouvir falar de sítios.
Eu gosto de ouvir falar de sítios porque os colecciono falados.
Falados e escritos: encorpam as minhas viagens verbais.
Ribeira de Pena e Herdade da Ataboeira, próxima do Ciborro.
Atenas e Serafim, Foitos e Itália.
Estrada Militar, Amadora.
Maracay é na Venezuela.
Aquela Itália não é o país, é um casal entre os Foitos e a Ribeira de Santo Amaro, no Louriçal.
Antigamente, a Liberdade era o Passeio Público, era.
Esta manhã, vi uma banca muito bonita, tinha bolos e fruta e um júbilo de queijos perfeitos sobre pano muito branco.
Também vi uma cadela de olhar completamente maravilhoso.
Esmagado, o dente de alho é muito mais fácil de descascar.
Estou há muitos, quiçá de mais, anos parados a esta janela feita de vidro de garrafas.
Morituro é uma palavra que inventei porque me faltava.
Sou um morituro, tal como vós e como voz.
Olá.
Aquele anel de grosso oiro naquela mão grossa, forte.
Uma vez, em Elvas, sulquei a noite como se a noite fora um mar e eu, uma nave.
E as noites quando éramos meninos?
Os pais viviam, os primeiros cães também.
A vida pensativa às vezes lateja como uma janela solar.
(Vem ali a mulher-cabeça-de-égua que outro dia escrevi.)
Deitar-me e jazer.
Mulheres em cozinhas descascando favas.
Quando se gosta de uma pessoa, ela tem um sabor a só-ela.
Outras vezes, a humanidade pesa quilos no coração.
Paços de Ferreira e Paços de Brandão.
Fonte, Barco, Neves, Monção, Alcarraques, Vil de Matos.
Certa chuva enverniza certas telhas.
Na Praceta de D. Sebastião (ou São?), subi uma escada.
Ainda não fui à campa de Vitorino Nemésio no cemitério de Santo António dos Olivais, Coimbra.
Em Lagos, uma vez, fui feliz da vida.
Eu não posso desistir da beleza que vem nas canetas.
Eu não posso desistir de sítio algum, aqui parado,
à janela.

3 comentários:

jorge ferreira disse...

Ainda que muitas coisas estejam a mudar, continua a poder ser-se feliz em Lagos por mais de um dia. Sophia continua a estar presente, todos os dias.

Nuno Dempster disse...

Maravilha!

Daniel Abrunheiro disse...

Ter um Jorge F. e um Nuno D. por leitores destas coisitas - é honra subidíssima, que agradeço já e aqui e agora.

Canzoada Assaltante