31/12/2009

Rosário Breve nº 136 - www.oribatejo.pt






Mutatis non mutandis






Desde que proibiram o fumar nos cafés que as mutações sociogenéticas não param de produzir esquisitices. Estou para ver que raio nos vai trazer o Janeiro novo.
Antigamente, como sabeis, Janeiro era o mês do cio dos gatos. O cio normal, quero eu dizer, isto é, gato chorando por gata e gata apimentando gato: sombras furtivas por pátios, telhados, vielas, varandas e varandins. Agora, não sei se vai ser assim. Depois da proibição do cigarrito em tudo quanto é sítio, andam para aí agora a falar no casamento não sei quê gay e coisas assim e tal.
Antigamente, como sabeis, não havia gays. Falava-se assim-assim à boca pequena de pederastas e tal, mas eram todos casados e levavam uma vida como a gente, alguns até eram bancários e professores e tal e coiso. Era no tempo em que, ao contrário de agora, as pessoas punham as poupanças nos bancos para as salvaguardar. Chegava-se a este ponto: em caso de aperto, os bancos devolviam o dinheiro. Saudades.
Mas como ia dizendo, isto vem tudo do fascismozito pseudo-higiénico dos moral-antitabagistas. Se pudéssemos continuar a ver cinzeiros ao pé das chávenas da bica, tenho a certeza de que por exemplo o BPP não fazia o que anda a (des)fazer. Tabaco pago no acto de entrega, mas os produtos expostos não são para consumo da casa, são para consumo do cliente. Queres fiado, toma. Como antigamente. Sim: se não fosse isto de ter de se fumar na rua como toxicodependentes legal-tolerados, não andariam para aí homens a gostar de homens e a quererem à força repetir a nossa asneira-mor, isto é, o casamento.
Mudando o que não devia ser mudado (é o que o título latino da crónica desta semana quer dizer), as chatices redobram. Ele é o mau tempo em Torres Vedras. Ele é Bragança encerrada por causa de tanta neve. Ele é Corroios a armar-se na Veneza do Seixal. Ele é o Código Contributivo de pantanas. Ele é o diabo a quatro a pintar o sete.
Em minha casa fuma-se. Fumamos os dois. Homem e mulher. E vem aí Janeiro.
Janeiro como antigamente.


A Um Tempo Só


© Henri Cartier-Bresson – Lisboa, 1955







Souto, Casa, tarde de 31 de Dezembro de 2009




Hotel Claridge, Café Carlton, eu fui já feliz só entre comensais sós.
Invernos arrostavam estios, a cidade era o mundo suficiente para toda a gente.
As décadas embranqueceram as pessoas e enegreceram as paredes.
Pintores de rua, músicos de rua, malabaristas de rua e polícias de giro.
Carroças de hortaliça, carrinhas de peixe, motas side-car, bicicletas escuras.
Domingos à tarde, concertos no Carlton, sábados no Salão de Cristal do Claridge:
Berlioz, Monteverdi, Brahms, Liszt, Schubert, Schumann, Mendelssohn.
Manhãs aspergidas de chuva fria como ferros cadentes, paulatina recuperação do viver fora do corpo em prol dos outros, em garantia dos abastecimentos: queijos, iogurtes, carcaças de farinha e de carne, vinhos, sabões, impressos, velas, peças de máquinas eléctricas, discos, livros, cabos, cordames, óleo e gasóleo, pagelas, flores.
Crianças subiam para o adultério, ex-viris minguavam na diagonal para o cemitério.
E hoje sei que o mesmo se passa em outras cidades, neste tempo como noutro.

Infinita Alegria


© Fernando Campos – Mulher Sentada com um Cachorrinho Triste



Souto, Casa, entardenoitecer e noite de 30 de Dezembro de 2009



Das roseiras os agudos braços
seguram da tarde a luz esmaecida.
Que a vida se não dê por esmarrida,
antes preencha os tempos e os espaços.

Esmeralda negra, totalitária noite nova de ano finafindando-se. Em casa, o corpo é quanto barco há para tal mar. Tudo arrostar com rosa, prosa, ciência e paciência, estudo e atenção. Educado, cortês desejo de alegrias não muito grandes. Imagens ortoépias em o imo da cabeça, não pode tudo ser coração. Alguns paraísos terreais a praticar com a ideia feita palavra desde antes e para todo o sempre depois: um trecho de rio, laranjeiras espargindo o vento, o incêndio benigno do crepúsculo ao cabo de marcha por a floresta, um cão que nos recebe com alegria infinita.

30/12/2009

Lista de Encargos para Honesto Estudo


© M. C. Escher, Drawing Hands (1948)







Souto, Casa, noite de 28 de Dezembro de 2009


Áspide e basilisco e catafalco e desacerto
Endógeo e furlana e golpe e hebertismo
Íncubo e jalofo e lenticela e marraxo
Nosaria e olaré e pirríquo e quintã
Retreta e sabor e tensor e umbro
Valsa e xénio e zoupo:



peças maravilhosas da máquina maravilhosa, a Língua.

Gondoleiros retornando a casa em furlana ao crepúsculo,
cidadãos oliveirenses retendo as águas de chorar ante um féretro íncola tirado a fantil,
matéria e antimatéria e progressos na compreensão cosmo-agónica,
fáleras incontáveis em romanos peitos,
vórtice com águas espigadas em satélite,
elucubrações boas em campo de horas rasas,
as nossas mães ao soalheiro um sábado de há décadas mais felizes.


Assim começa a minha lista de encargos para honesto estudo esta noite. Estou pronto. Um
homem visto de cima para baixo, ele progredindo num deserto incartografável, talvez seja a devastada vastidão da mente dele aquilo que sobrevoamos.


Síndromes, açougues, Big Bang/Big Ben, tudo em grande, assimetria de partículas/antipartículas, a cabeça da gata aflorando o edredão, a improbabilidade do início impossibilita o fim, as astrovidas são as nossas como são as dos animais, das plantas, das pedras, das águas, das casas comerciais, das azinhagas, das encruzilhadas, dos tablados medicinais, dos anfiteatros povoados ’inda de espectros mascarados.


Agonia e bromatologia e cabo e didascália
Egofagia e filologia e gaia-ciência e hebefrenia
Inhenho e jaculatória e laqueca e macilência
Nefrite e ouropel e pegulho e quebrada
Rabita e sericina e talim e unguento
Vidrecome e xabrega e zoonímia:



peças maravilhosas outras mais.

Sangria cromática dos panoramas boreais,
taça verdescura plena de peras avinhadas,
senhoras de Castela acolchoadas em balcões de procissão,
observação do que passa e se passa,
lavradores bebendo água de pé sob o astro-rei,
cumprimento das deixas do Pai vid’afora,
nádegas de actriz editadas em cinemascope.

 

Assim progridem lista e encargos, não lhe nem lhes faltem nem honestidade nem estudo.


5 de Dezembro de 1945, desaparecimento de soldados norte-americanos para bandas do Triângulo das Bermudas (Voo 19). Great Sale Cay, Hens and Chickens, Fort Lauderdale, Miami. Gula de enigma, especulações fantasistas, exploração sentimentalóide, sensacionalismo obscurantista, ânsia de sobrenatural. Mas parece que os homens desapareceram mesmo, mais seus salvo erro cinco aviões. Busca e salvamento inconsequentes. Mistério e televisão rentável. Nuvens densas como muros no horizonte alto: montanhas de vapor não desprovidas de magia. Destroços nenhuns, enigmas cardiotónicos muitos.


Ametropia e barrunto e chousal e derriço
Egofonia e favónio e gastrocele e hipoandrismo
Irroração e jacinto e léctica e melanope
Ninfeu e obsticidade e pisseleu e quinau
Rocim e sestra e termestesia e urodinia
Velhaquete e xistarca e zaré:



infinita é a maravilha, maravilhosa é a infinitude.

Garça que à graça dá de graça corpo,
torpor pós-prandial em Pomona plena,
a euforia nazi até 1941,
águias empalhadas em despensas de museus,
Marlene e Albert voando través-Atlântico,
A alma confiante conhece o seu nada, como o de todas as criaturas”,
escreve o Padre Thomas de Saint Laurent algures na minha vida nocturna.
E embalo-me nessa dormência vigilante ainda assim (poucos carros já na estrada perto de casa, 22h06m). Vale que a qualquer suma teológica preferirei, sempre, qualquer resto-zero antropológico. Assim é, garanto-vo-lo. E sigo acumulando nomes: o Abade Sisöis, o Cônsul Aristides de Sousa Mendes, Santa Gertrudes, José Mário Branco, Raimundo de Cápua, Santa Catarina de Siena e o Bibi da Casa Pia lisbonense. E, já agora, Saint-Jure, Sauvé, a Irmã Benigna Consolata Ferrero (daqui a dois dias aprenderei também o de Helena Kafka, a Irmã Maria Restituta decapitada pelos nazis em Viena de Áustria) e São João Crisóstomo, cuja provável eloquência o terá epitetado de Boca de Ouro. A minha esperança (a minha confiança, para glosar o pio Thomas de Saint Laurent) é ter sido palavras em a então ida vida. De modo que


Aclive e bolinete e cordite e deixação
Enchova e folacho e ganau e hendíadis
Iró e jubileu e leguória e macradénia
Neuma e orcina e Pomona e quididade
Ressaio e solecismo e tágide e urra-boi
Vidual e xarafim e zirra-zirra:



música todas.

Oh, 23h33! Vai-se o dia embrulhado em noite. Que palavras pescarei no dia que vem? (Virá ou não.) Garça que à graça.
E honesto estudo.



Europas – 2


Cartaz do NSDAP de 1932: “Nossa última Esperança: Hitler”





Souto, Casa, tarde de 29 e madrugada de 30 de Dezembro de 2009











Roland Freisler, o juiz-marioneta de Hitler, vai em 1937 a Moscovo assistir ao julgamento de Tukhachevsky. Freisler vai aprender com o seu homógo Yshinsky como se purga qualquer opositor à tirania. Stalin está para Yshinsky como Hitler para Freisler. É o tempo do horror em nome do Estado. É o tempo em que o Estado é um tarado individual: Stalin, Hitler e quejandos. Freisler acabou por se lixar em Fevereiro (dia 3, 11h08m da manhã) de 1945. Um bombardeamento aliado sobre Berlim rebenta com o gajo em pleno tribunal. Por uma vez, a justiça veio do céu. Justiça-justiça, não a falsificação dessa figura tão abstracta e de tão concretas e desumanas, quantas vezes, consequências. Claritta von Trott zu Solz enviuvou por causa de Freisler, uma vítima sobreviva entre tantas outras. Os monstros existem, a Europa também os pare fartamente. Não é preciso recuar a 1937. Os anos 90 na ex-Jugoslávia. Os dias de hoje no Iraque, o zamericanos infecciosos. Os Russos e os Chechenos, testo e panela. De qualquer modo, esquecer nunca. Baldur von Schirach, o cabrãozinho corruptor da mocidade alemã (Hitlerjugend), nazificador da inocência. Conseguiu viver até 1974, ainda assim, cumpridos vinte anos de prisão decretados pelos julgamentos de Nuremberga. Cinquenta e cinco milhões de mortos contabilizados na II Guerra Mundial? Quantos mais até então e a partir de então? Herbert Richter foi soldado na I GM. A 11 de Novembro de 1918, sentiu-se irritado: como soldado alemão, não se sentia derrotado, não ainda. Marxistas, judeus, espartaquistas depois, foram considerados pelo vulgo como traidores à causa pangermânica. Hitler capitalizou bem a frustração popular. Galgou o Reichstag sem espinhas. Tifo, tuberculose, influenza – e hitlerianismo. Doenças de um século decadente desde a hora primeira. Maus tempos, por mais belle époque que lhes chamem. Europa, Europa. Arbeiter! General Streik! Die Reaktion Marschiert! Hoch das Rätesystem! A autoproclamada República Soviete da Baviera (Abril de 1919) deu com os burros na água. Só podia. Vinham aí outros monstros. A Raça (e a ração), a Eugenia, a Merda, a Morte Multitudinária. Fridolin von Spau voluntariou-se pela ala direita (Freikorps), que era apoiada pelo Exército, contra os bolchesquerdistas de Munique. Cinco mil mortos, dizem. Mataram na Baviera, a 5 de Julho de 1919, Eugen Leviné, líder comunista e judeu, pai de um então menino chamado Eugene, na refrega. O fuzilamento teve lugar na Prisão de Stadeslheim. Europa, Europa. Era o princípio do fim para a Räterepublik. E era o início da sinonímia Bolchevismo – Judaísmo nas masmorras mentais da populaça ariana. Não deixa de ser tragicómica, ainda assim, de a alegada homossexualidade de Ernst Röhm ter servido de justificação para o seu assassínio. Adeus SA, SS olá. E o irrelevante senhor Emil Klein foi membro do Partido Nacional-Socialista entre 1921 e 1945. Safou-se, o senhor Emil K. Ó Alsácia, ó Lorena! E esse reles criador de galinhas chamado Heinrich Himmler? Em 1923, uma menina chamada Jutta Rüdiger vivia no Ruhr reclamado e ocupado pelos victores franceses, em consequência do desfecho da I GM (Tratado de Versalhes, indemnizações etc.) – logrou sobreviver a tudo e chegou a velha. De um programa televisivo espalhado pela internet (http://www.youtube.com/watch?v=NEXE6wS2fUU&NR=1, por exemplo, é a terceira de cinco partes), retornamos ao tempo eco-bucólico do Wandervogel Movement, malta que em meados dos anos 20 se propunha o convívio simples com a Natureza. Um desses rapazes era Bruno Hähnel, que também chegou a velho. Os tais cinquenta e cinco milhões de mortos não totalizavam a Humanidade toda, vá lá que não vá. E entre 1928 e 1945, o senhor Wolfgang Teubert foi uma dedicada camisa castanha SA (Sturmabteilung, isto é, Batalhão Tempestade). Ah pois foi. E também se safou. Europa, Europa. Deutschland, Deutschland. Do que não há dúvida é de o estoiro da Bolsa em 1929, do outro lado do mar, ter favorecido um partideco extremista que nas eleições de um ano antes registara apenas 2,4% de votos. Menos de cinco anos depois, Hitler era chanceler do Estado (Novo). Para o rol de nomes sobreviventes, o de Alois Pfaller, militante da Juventude Comunista Alemã entre 1926 e 1934. Falta aqui um banqueiro? Ei-lo: Johannes Zahn, economista em 1931. Hindenburg bem tentou negar ao Adolf o leme da chancelaria. O homenzinho do bigodinho acabou por ter quanto desejava: a Alemanha e cinquenta e cinco milhões de mortos, ele felizmente incluído.

28/12/2009

Fragmentos Envernizados pela Falsidade Bondosa e Ingénua


Les prostituées de la Calle Cuauhtemoctzin à México, 1934




© Henri Cartier-Bresson (Magnum)











Souto, Casa, madrugada de 28 de Dezembro de 2009







Quantos livros em forma de gente andam por essas ruas ilegivelmente – tantos quantos os homens e as mulheres.
As árvores são de mancha gráfica vertical – como os poemas e as estátuas. Mas as pessoas são narrativas, as mais das vezes ilegíveis.
Histórias comuns incomunicáveis. Na impossibilidade de lê-las, escrevo-as. Fantasio com sintaxe. Não sei nada. Não conheço ninguém. E no entanto preencho cadernos mais cadernos com fragmentos envernizados pela falsidade bondosa e ingénua que é, deveras, a marca-de-água (ou a pedra-de-toque) que me trouxe e me levará e deixarei.
Tânia, mulata, inquilina regular da Pensão Coimbra-Madrid. Limpezas no hipermercado ao dia, à noite voltas de passeio acim’abaixo na zona do Cinema Calypso. Tem 38 anos, uma filha à custódia de uns senhores brancos do Largo da Brevidade.
Pelicano, engraxador. Sexagenário, fumador de Português Suave desde os 12 anos. Viúvo de Nora há 18 anos. Um filho no Luxemburgo, uma filha no Canadá. Tem poupanças no banco. Não lhes toca.
Existem, não existem, resistem, desistem. Não sei. Agora estão escritos. É-me mais fácil viver com esta gente, viver por essas ruas concretas ou não. Mais fácil do que apenas aceitar a dita ordem alegadamente natural das coisas. Já não tenho remédio, tarde de mais para não seguir senão em frente com isto.
Casimiro, representante de adereços femininos, viaja o País de cabo a rabo há quase três décadas. Ele tem, quê?, 51, 52. A mulher é costureira em casa, algures no Norte. Sem filhos. Sem metafísica. Também, como eu e alguns de vós, sem remédio.
Pamela Anderson Lee, artista de vídeo. Por sistema, estrela do sistema. Dólares no rego das mamas, no elástico das cuecas, nas ligas, no tapete e contra a parede. Sublimação de talhante. Pessoa como as outras.
Também, atenção!, me acontece não escrever. Às vezes, até penso uns instantes. Outras vezes, leio coisas como O Livro da Confiança. Já falei disto, suponho. É obra do Padre Thomas de Saint Laurent. É trabalho católico. Leio tudo e depois abandono a publicação numa estante alta, inacessível às crianças como os medicamentos. Em caso de grande fadiga moral, folheio o José-Augusto França de A Arte em Portugal no Século XIX ou A Volta ao Mundo dada e escrita por Ferreira de Castro na primeira metade da década de 40 do século passado. E então repouso e sou, por assim dizer, feliz.
O maná que me cabe, sei-o bem, decorre da infinitude. Não tanto da cosmogónica (se bem que essa me sossegue, relativizando-nos – e perdoando-nos – como relativiza – e perdoa) como da idiomática. Porque o idioma é infinito: meros 26 grafemas para cumulativos triângulos e espirais de sons – magia e infinito. A dupla articulação verbal é absolutamente feiticeira. Se ele há milagre, há-o no idioma. Daí as pessoas, as pessoas ilegíveis mas escrevíveis – ou escrevíveres, minha nutrição e sustento meu.
O que houver de esquizo nisto não me adoece. Um eu tem de poder tratar-se por tu.
Walpole, inglês, 45 anos como os que vou tendo. Criado de libré, servidor de chás e de sanduíches triangulares de pepino. Adepto discreto do Fulham Football Club. Apostador, uma vez por mês, no hipódromo. Férias de Verão, uma semana no sul de Espanha em casa de um amigo colorido, por assim dizer.
Magda, bióloga ao serviço de uma multinacional do ramo farmacêutico. Coleccionadora prestigiada de esferográficas com publicidade: uns catorze milhares, para mais. Sozinha no amor como um cão à chuva, mas algum sexo pontual, mormente na quadra natalícia.
Iguana, tartaruga, corvo, canário,
Dália, rosa, tulipa, begónia,
Tacho, sertã, escumadeira, garfo,
Hamsun, Benet, Böll, Coccioli.
Jogo de filtro de cores, panóplia, pandemia, suco,
Browning/Barrett, Lytton Strachey/Sackville-West,
Montalbán/Marías, Maradona/Cruijff,
Odessa/Capri, Bond/M,
África/Brasil, Índia/China,
Buckingham/Versailles, alaúde/clavicórdio,
Sal/pimenta, cultismo/conceptismo,
Navarra/Andaluzia, Scott/Amundsen,
Cuneiforme/digital, Walpole/Magda.
Às 2h17m, o silêncio é uma dádiva das esferas. Os adormecidos pastam deles a solidão extrema mesma. Imitam timidamente os grandes e os pequenos mortos da História toda até agora. Raros carros sibilam na via mais próxima da casa. A hora vale por um país. A madrugada, por um continente. E a noite, por um hemisfério à escala planetária. Nenhuma agonia agora, idioma apenas: v livre, ambulatório, criador, livre e livro.
Na ressaca do mar imaginário, este ir pela praia sem hora marcada. Humidade de areia nos supostos pés nus. O vento todo na cara, redesenhando-a. Roupa boa, boamente cingida ao quase-corpo da escrituração. Fabuloso farol, verdevermelhoverdeazulvermelho, na noite nova ante-barcos invisíveis mas legíveis, além. Vou. Vindes comigo, traz-vos o idioma à solta, cão livre de peias, pássaro agora marinho, as asas na cara paginando o vento, i-numerando o olhar não enumerável. Mulheres cantoras, degoladoras de aves, furões de capoeira, parideiras robustas, devotas da Senhora da Agonia.
RAF/Luftwaffe, Foch/Pétain,
Sartre/Castor, Manaca/Malta da Silva,
Alfredo M./ Amália R.,
Pedra/vidro, Márai/Cioran,
Libélula/louva-a-deus,
Hopper/Magritte, NYC/LA,
George/Ringo, Jules/Janvier,
Loren/Bardot,
Purple/Zeppelin,
Casimiro/Pamela.
Os Irmãos Wright, Neville, Walker, Gibb. Os rapazes do surf. A elite astronáutica. A impiedade genocida agora a cores. O trânsito nazi pós-1945 via Vaticano. A prussificação dos exércitos argentino e chileno. O suicídio forçado de Rommel, dito A Raposa do Deserto. Von Paulus capitulando na Rússia. O Norman Mailer de Os Nus e os Mortos. 2h36m. Jamiroquai e Saint-Saëns. Bolor de queijo e chuvas diagonais hidratando a infância. Um homem no Monte do Picoto comendo nozes em estado de puro silêncio. O êxtase de algumas epifanias, a saber: a pele das mulheres orvalhadas, o perfume da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a inclinação violeta do primeiro sexo, a irreprimível euforia ante Bach e Mozart e Monteverdi e Fausto Bordalo Dias, a confirmação de tudo e mais alguma coisa notariada por António Osório, essoutra música chamada Ruy Belo, lances solitários em Lisboa sem ser por esperança nem por desespero, o casal transmontano que servia favas e iscas e sopa em malgas de metal, o Bairro dos Actores e o sósia de Cristo ressequido de heroína pedindo esmola aos pés do Instituto Superior Técnico, a Woolf a entrar na água com os bolsos cheios de pedras, Anthony Hopkins a fazer de Pierre Bezuhov em a Guerra e Paz da BBC e o Alan Dobie de Príncipe Andrei Bolkonsky,
Tânia/Pelicano.

Jim Morrison, The Weird Dawn of Dreams



Descoberto no youtube. Engraçado.

27/12/2009

Europas – 1


© Amedeo Modigliani





Souto, Casa, 27 de Dezembro de 2oo9







Berlin, 1927, Walter Ruttmann. Homens de cinza, mulheres de prata, crianças de mercúrio. Halt! Hier!



Pedacitos de papel entre cotão nos bolsos do fonometrista Alfred Eric Leslie Satie (também Virginie Lebeau e/ou François de Paule) por Paris.



Uma senhora houve de nome Adelaide Pastor, mas não era ele nem Walter R., teria a ver com algo amoroso na vida de João Baptista da Silva Leitão, mais tarde de Almeida Garrett, a sul da Europa.



Halt! Hier!



Em Manchester, o cancro de cimento (Stephen Morris dixit), a barafunda labiríntica das fábricas, a saída pelo lado da ilusória Divisão Alegria, senhor Ian Curtis. E a terra arqueando-se até Burnley, não?



E a Stevie Nicks e os pássaros terapêuticos de Rhiannon: acreditar nestas fábulas contra a realidade e o resto e o rosto do mundo.



Outro Eric, o Clapton, e aquilo do filho: e não haver céu senão pela música: Rhiannon, última paragem.



Cidades com veias de água expostas ao céu de cartão.



Índices de pedra romana, o sal da identidade colectiva na língua individual.



Friedrich Dürrenmatt, mas também Alfred Döblin – e como não o asceta Louis-Ferdinand Céline? E o Óscar Lopes e o Eduardo Lourenço, é claro.



Como é claro que Ruttmann não poderia ter filmado o Muro que não havia – e que deixou de haver a partir do equívoco de Günter Schabowsky: uma peça doble para a História do Dominó, isto é, da(s) Europa(s).



Ou então e também: 15 de Abril de 1989 em Hillsborough, a casa do Sheffield Wednesday F.C., meia-final da Taça de Inglaterra entre Liverpool e Nottingham Forest. Mortos, 96. Esmagamento, multidão em pânico. O casal Hicks perdeu as duas filhas de uma só vez. Nomes para essa trag’istória:







John Alfred Anderson (62)



Colin Mark Ashcroft (19)



James Gary Aspinall (18)



Kester Roger Marcus Ball (16)



Gerard Bernard Patrick Baron (67)



Simon Bell (17)



Barry Sidney Bennett (26)



David John Benson (22)



David William Birtle (22)



Tony Bland (22)



Paul David Brady (21)



Andrew Mark Brookes (26)



Carl Brown (18)



David Steven Brown (25)



Henry Thomas Burke (47)



Peter Andrew Burkett (24)



Paul William Carlile (19)



Raymond Thomas Chapman (50)



Gary Christopher Church (19)



Joseph Clark (29)



Paul Clark (18)



Gary Collins (22)



Stephen Paul Copoc (20)



Tracey Elizabeth Cox (23)



James Philip Delaney (19)



Christopher Barry Devonside (18)



Christopher Edwards (29)



Vincent Michael Fitzsimmons (34)



Thomas Steven Fox (21)



Jon-Paul Gilhooley (10)



Barry Glover (27)



Ian Thomas Glover (20)



Derrick George Godwin (24)



Roy Harry Hamilton (34)



Philip Hammond (14)



Eric Hankin (33)



Gary Harrison (27)



Stephen Francis Harrison (31)



Peter Andrew Harrison (15)



David Hawley (39)



James Robert Hennessy (29)



Paul Anthony Hewitson (26)



Carl Darren Hewitt (17)



Nicholas Michael Hewitt (16)



Sarah Louise Hicks (19)



Victoria Jane Hicks (15)



Gordon Rodney Horn (20)



Arthur Horrocks (41)



Thomas Howard (39)



Thomas Anthony Howard (14)



Eric George Hughes (42)



Alan Johnston (29)



Christine Anne Jones (27)



Gary Philip Jones (18)



Richard Jones (25)



Nicholas Peter Joynes (27)



Anthony Peter Kelly (29)



Michael David Kelly (38)



Carl David Lewis (18)



David William Mather (19)



Brian Christopher Mathews (38)



Francis Joseph McAllister (27)



John McBrien (18)



Marion Hazel McCabe (21)



Joseph Daniel McCarthy (21)



Peter McDonnell (21)



Alan McGlone (28)



Keith McGrath (17)



Paul Brian Murray (14)



Lee Nicol (14)



Stephen Francis O'Neill (17)



Jonathon Owens (18)



William Roy Pemberton (23)



Carl William Rimmer (21)



David George Rimmer (38)



Graham John Roberts (24)



Steven Joseph Robinson (17)



Henry Charles Rogers (17)



Colin Andrew Hugh William Sefton (23)



Inger Shah (38)



Paula Ann Smith (26)



Adam Edward Spearritt (14)



Philip John Steele (15)



David Leonard Thomas (23)



Patrik John Thompson (35)



Peter Reuben Thompson (30)



Stuart Paul William Thompson (17)



Peter Francis Tootle (21)



Christopher James Traynor (26)



Martin Kevin Traynor (16)



Kevin Tyrrell (15)



Colin Wafer (19)



Ian David Whelan (19)



Martin Kenneth Wild (29)



Kevin Daniel Williams (15)



Graham John Wright (17) .







Duas décadas sem estas pessoas. Também isto é Europa, não só um dos satélites de Júpiter. A propósito, reter a consternação verdadeira do jogador nº 8 dos Reds, John Alridge.



Entro aqui para contribuir com alguns mortos naturais da minha vida:







Fernando Pratas



Ernesto Lucas



João Manuel Arcanjo Dias



Caniço do Bairro de Nossa Senhora de Fátima



Elias Rodrigues Faro



Armando José Oliveira



Guilherme Pais



Acácio Buto



Maria da Luz da Relvinha / Bairro do Brinca



Né Coruja



Tónio Torres



Armando Torres



e outras e outros, todas e todos europeus.







Almeida Garrett separara-se há muito de Luísa Midosi. Não se conhece mulher ao filho de Cristóvão Vieira Ravasco e de Maria de Azevedo, o senhor Padre António Vieira, cultor maior da língua portuguesa, apesar de ter estado no Brasil. Os dias correm rios, entretanto. As noites acercam-se como lonas. Pratas e diamantes coruscam os céus. Quatro décadas mais dois anos se passaram sobre o momento em que sai da portuense Tipografia Nunes, ao nº 57 da Rua José Falcão, para a Portugália Editora, a tiragem de Novos Temas, Velhos Temas, do incontornável João Gaspar Simões. A epígrafe é do também incontornável biografista Sainte-Beuve – e a lista de plumitivos abordados é, no mínimo, atraentíssima:







Somerset Maugham



André Gide



Marcel Proust



Paul Valéry



T. S. Eliot



Pirandello



Ernest-Robert Curtius



Franz Kafka



Camus



Dostoievsky



Tolstoi



Thomas Mann



Goethe



Chaplin



Jean-Paul Sartre



Bernard Shaw



Georges Bernanos



R.-M. Albérès



Ionesco



Valle-Inclán



Henry Fielding



Stendhal



Balzac



Flaubert



Irmãs Brontë



Henry James



Anthony Trollope



G. M. Hopkins



Edgar Poe



Arthur Rimbaud



Samuel Butler



Laurence Sterne



Machado de Assis



Jane Austen



Boswell



Gomes de Amorim



Lewis Carroll



Tchekov



e outros mortos-vivos.







Uma vela pequena arde sobre a pedra do lar. É uma presença viva, memorial dela, vela, mesma. A chávena que serviu café está vã. Restos de bolos povoam a mesa baixa. O domingo escoa-se. O calendário é fluvial. Rãs tiritam em charcos remotos. As Europas acumulam-se nas casas, nas aldeias, nas azinhagas derradeiras. O húngaro Sándor Márai, mas também o grego André Kedros, o eslovaco Ivan Kadlečík e o sueco Carl Grimberg.



Nomes, números, anos – o Rio Europa.



Lá em cima, Modigliani. A memória ajuda a pintar, ou seja – a falsificar. No fundo, está a sobrevivência, esse instinto matador. Anos-nomes, gente, desastres, luminosas solidões, o domingo, a Quadrilha de Bonnot, o Ecce Homo à Nietzsche, o tenebroso diário final de Simenon, pelo menos tão perturbador quanto o da Woolf, os nossos cultistas e conceptistas de Seiscentos, gongorismos a dar com um pau, o milagre camoniano, as finais da Taça de Inglaterra, o Malmö Fotbollförening a partir do dia 24 de Fevereiro de 1910, ’inda por cá era a monarquia, Corfu filtrada por Le Carré, mas não só, não apenas, como também tantos poetas visuais europeus compendiados em 1977 por Josep M. Figueres e Manuel de Seabra para a Editorial Futura, a saber:







Aberásturi



Luca Alinari



António Aragão



Arias Missoni



Mirella Bentivoglio



Vicenç Bonàs



Pepe Bornoy



Jean François Bory



Antonio L. Bouza



Joan Brossa



R. Canais-Guilera



Mary Carmen de Celis



Henri Chopin



Hans Clavin



Liberto Cruz



Herman Damen



Vimala Devi



Reinhard Döhl



Samuel Feijóo



Ferro Ferro



Josep M. Figueres



Michael Gibbs



Antonio Gómez



Klaus Groh



Gabriel Guasch



Ana Hatherly



Werner Hebst



J. Iglésias del Marquet



Juanjo



Carmen Kuhn



Diego Lara



Alfonso López Gradolí



Lotta Continua



Pedro M. Lucía



Peter Mayer



E. M. de Melo e Castro



Santiago Mercado



Teresa Mialet



Eugenio Miccini



Ramon Miravitlles



Luciano Ori



Ignacio Pérez Piño



Michele Perfetti



Silvestre Pestana



Lamberto Pignotti



Francisco Pino



Fabio de Poli



Pere Queralt



Joan Rabascall



Katty la Rocca



Arsenio Ruiz



Joaquim Sala i Sanahuja



Saltés



Sarenco



Manuel de Seabra



Klaus Staek



A. Tàpies-Barba



Miroljub Todorovic



Karel Trinkewitz



José-Miguel Ullán



Timm Ulrichs



Jirí Valoch



Guillem Viladot



Paul de Vree



Jan Wojnar



e



Zabala



e quantos vivos mais e mais quantos mortos?







As gatas assimilam da lareira o lume, de vez em quando assaltam mansamente a cozinha, as horas frutificam jogos de sombras, os vizinhos são ruidosos, dá vontade de lhes bater na cabeça com um pau crivado de pregos, o remédio é pôr um disco a rodar com os auscultadores escoltando a cabeça, não pode ser.



Fotografias por toda a casa por toda a vida toda a Europa.

Halt! Hier!



Canzoada Assaltante