Pode o sável ser atlântico?
Temos quase todos sonhos atlânticos mas vidas ribeirinhas. Por assim dizer: sonhamo-nos cristal, mas é de vidro que somos. De vez em quando alguém telefona, de quando em vez alguém não está disponível. Lá em baixo, os salgueiros juncam os areais de sombras lacrimosas, os pardais galinham à cata de migalhas, os cães mais rafeiros douram de ouro pobre a urbanidade exígua das vilas, a Elis Regina deixou-se disto e a política é o que é e é o que nós não somos.
Tirando esta magérrima metafísica preambular, vamos todos de vento a dar pela popa, a bolina contrariada pela economia, o calado do barco sofrendo a linha umbilical das águas frias, os albatrozes acinzentando a linha do entardenoitecer, acendendo-se já os melancólicos candeeiros da cidade, quando as pastelarias reabrem para um anoitecer de sopa, rissol, descafeinado e ala para casa.
Se isto é só em Portugal?
Não, mas só Portugal me interessa. Não católico embora, cresci perto de igrejas que entristeciam com a noite, os tais salgueiros, os tais pardais, a linha debruada a água do tal entardenoitecer. Um plátano, de repente, vigora cegonhas. As mulheres casadas passam com a economia às costas como mulas de carga. Bufarinheiros, flibusteiros e empregados bancários sopram motorizadas de madeira perto de canoas. Um vento começa. E então.
Então é sexta-feira, Santarém moureja ao alto da nostalgia de muitas águas, lá em baixo as enguias, a açorda, as casas de pernas altas, muito de pau, o sável.
E então eu hoje não falo de política, nem de gente desonesta. Penso no sável. Penso na minha vida de facto atlântica mas, deveras, ribeirinha.
1 comentário:
soube-me muito bem ler este conformismo fluvial. não sei bem porquê, se calhar por estar tão bem escrito.
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