© Amedeo Modigliani
Souto, Casa, 27 de Dezembro de 2oo9
Berlin, 1927, Walter Ruttmann. Homens de cinza, mulheres de prata, crianças de mercúrio. Halt! Hier!
Pedacitos de papel entre cotão nos bolsos do fonometrista Alfred Eric Leslie Satie (também Virginie Lebeau e/ou François de Paule) por Paris.
Uma senhora houve de nome Adelaide Pastor, mas não era ele nem Walter R., teria a ver com algo amoroso na vida de João Baptista da Silva Leitão, mais tarde de Almeida Garrett, a sul da Europa.
Halt! Hier!
Em Manchester, o cancro de cimento (Stephen Morris dixit), a barafunda labiríntica das fábricas, a saída pelo lado da ilusória Divisão Alegria, senhor Ian Curtis. E a terra arqueando-se até Burnley, não?
E a Stevie Nicks e os pássaros terapêuticos de Rhiannon: acreditar nestas fábulas contra a realidade e o resto e o rosto do mundo.
Outro Eric, o Clapton, e aquilo do filho: e não haver céu senão pela música: Rhiannon, última paragem.
Cidades com veias de água expostas ao céu de cartão.
Índices de pedra romana, o sal da identidade colectiva na língua individual.
Friedrich Dürrenmatt, mas também Alfred Döblin – e como não o asceta Louis-Ferdinand Céline? E o Óscar Lopes e o Eduardo Lourenço, é claro.
Como é claro que Ruttmann não poderia ter filmado o Muro que não havia – e que deixou de haver a partir do equívoco de Günter Schabowsky: uma peça doble para a História do Dominó, isto é, da(s) Europa(s).
Ou então e também: 15 de Abril de 1989 em Hillsborough, a casa do Sheffield Wednesday F.C., meia-final da Taça de Inglaterra entre Liverpool e Nottingham Forest. Mortos, 96. Esmagamento, multidão em pânico. O casal Hicks perdeu as duas filhas de uma só vez. Nomes para essa trag’istória:
John Alfred Anderson (62)
Colin Mark Ashcroft (19)
James Gary Aspinall (18)
Kester Roger Marcus Ball (16)
Gerard Bernard Patrick Baron (67)
Simon Bell (17)
Barry Sidney Bennett (26)
David John Benson (22)
David William Birtle (22)
Tony Bland (22)
Paul David Brady (21)
Andrew Mark Brookes (26)
Carl Brown (18)
David Steven Brown (25)
Henry Thomas Burke (47)
Peter Andrew Burkett (24)
Paul William Carlile (19)
Raymond Thomas Chapman (50)
Gary Christopher Church (19)
Joseph Clark (29)
Paul Clark (18)
Gary Collins (22)
Stephen Paul Copoc (20)
Tracey Elizabeth Cox (23)
James Philip Delaney (19)
Christopher Barry Devonside (18)
Christopher Edwards (29)
Vincent Michael Fitzsimmons (34)
Thomas Steven Fox (21)
Jon-Paul Gilhooley (10)
Barry Glover (27)
Ian Thomas Glover (20)
Derrick George Godwin (24)
Roy Harry Hamilton (34)
Philip Hammond (14)
Eric Hankin (33)
Gary Harrison (27)
Stephen Francis Harrison (31)
Peter Andrew Harrison (15)
David Hawley (39)
James Robert Hennessy (29)
Paul Anthony Hewitson (26)
Carl Darren Hewitt (17)
Nicholas Michael Hewitt (16)
Sarah Louise Hicks (19)
Victoria Jane Hicks (15)
Gordon Rodney Horn (20)
Arthur Horrocks (41)
Thomas Howard (39)
Thomas Anthony Howard (14)
Eric George Hughes (42)
Alan Johnston (29)
Christine Anne Jones (27)
Gary Philip Jones (18)
Richard Jones (25)
Nicholas Peter Joynes (27)
Anthony Peter Kelly (29)
Michael David Kelly (38)
Carl David Lewis (18)
David William Mather (19)
Brian Christopher Mathews (38)
Francis Joseph McAllister (27)
John McBrien (18)
Marion Hazel McCabe (21)
Joseph Daniel McCarthy (21)
Peter McDonnell (21)
Alan McGlone (28)
Keith McGrath (17)
Paul Brian Murray (14)
Lee Nicol (14)
Stephen Francis O'Neill (17)
Jonathon Owens (18)
William Roy Pemberton (23)
Carl William Rimmer (21)
David George Rimmer (38)
Graham John Roberts (24)
Steven Joseph Robinson (17)
Henry Charles Rogers (17)
Colin Andrew Hugh William Sefton (23)
Inger Shah (38)
Paula Ann Smith (26)
Adam Edward Spearritt (14)
Philip John Steele (15)
David Leonard Thomas (23)
Patrik John Thompson (35)
Peter Reuben Thompson (30)
Stuart Paul William Thompson (17)
Peter Francis Tootle (21)
Christopher James Traynor (26)
Martin Kevin Traynor (16)
Kevin Tyrrell (15)
Colin Wafer (19)
Ian David Whelan (19)
Martin Kenneth Wild (29)
Kevin Daniel Williams (15)
Graham John Wright (17) .
Duas décadas sem estas pessoas. Também isto é Europa, não só um dos satélites de Júpiter. A propósito, reter a consternação verdadeira do jogador nº 8 dos Reds, John Alridge.
Entro aqui para contribuir com alguns mortos naturais da minha vida:
Fernando Pratas
Ernesto Lucas
João Manuel Arcanjo Dias
Caniço do Bairro de Nossa Senhora de Fátima
Elias Rodrigues Faro
Armando José Oliveira
Guilherme Pais
Acácio Buto
Maria da Luz da Relvinha / Bairro do Brinca
Né Coruja
Tónio Torres
Armando Torres
e outras e outros, todas e todos europeus.
Almeida Garrett separara-se há muito de Luísa Midosi. Não se conhece mulher ao filho de Cristóvão Vieira Ravasco e de Maria de Azevedo, o senhor Padre António Vieira, cultor maior da língua portuguesa, apesar de ter estado no Brasil. Os dias correm rios, entretanto. As noites acercam-se como lonas. Pratas e diamantes coruscam os céus. Quatro décadas mais dois anos se passaram sobre o momento em que sai da portuense Tipografia Nunes, ao nº 57 da Rua José Falcão, para a Portugália Editora, a tiragem de Novos Temas, Velhos Temas, do incontornável João Gaspar Simões. A epígrafe é do também incontornável biografista Sainte-Beuve – e a lista de plumitivos abordados é, no mínimo, atraentíssima:
Somerset Maugham
André Gide
Marcel Proust
Paul Valéry
T. S. Eliot
Pirandello
Ernest-Robert Curtius
Franz Kafka
Camus
Dostoievsky
Tolstoi
Thomas Mann
Goethe
Chaplin
Jean-Paul Sartre
Bernard Shaw
Georges Bernanos
R.-M. Albérès
Ionesco
Valle-Inclán
Henry Fielding
Stendhal
Balzac
Flaubert
Irmãs Brontë
Henry James
Anthony Trollope
G. M. Hopkins
Edgar Poe
Arthur Rimbaud
Samuel Butler
Laurence Sterne
Machado de Assis
Jane Austen
Boswell
Gomes de Amorim
Lewis Carroll
Tchekov
e outros mortos-vivos.
Uma vela pequena arde sobre a pedra do lar. É uma presença viva, memorial dela, vela, mesma. A chávena que serviu café está vã. Restos de bolos povoam a mesa baixa. O domingo escoa-se. O calendário é fluvial. Rãs tiritam em charcos remotos. As Europas acumulam-se nas casas, nas aldeias, nas azinhagas derradeiras. O húngaro Sándor Márai, mas também o grego André Kedros, o eslovaco Ivan Kadlečík e o sueco Carl Grimberg.
Nomes, números, anos – o Rio Europa.
Lá em cima, Modigliani. A memória ajuda a pintar, ou seja – a falsificar. No fundo, está a sobrevivência, esse instinto matador. Anos-nomes, gente, desastres, luminosas solidões, o domingo, a Quadrilha de Bonnot, o Ecce Homo à Nietzsche, o tenebroso diário final de Simenon, pelo menos tão perturbador quanto o da Woolf, os nossos cultistas e conceptistas de Seiscentos, gongorismos a dar com um pau, o milagre camoniano, as finais da Taça de Inglaterra, o Malmö Fotbollförening a partir do dia 24 de Fevereiro de 1910, ’inda por cá era a monarquia, Corfu filtrada por Le Carré, mas não só, não apenas, como também tantos poetas visuais europeus compendiados em 1977 por Josep M. Figueres e Manuel de Seabra para a Editorial Futura, a saber:
Aberásturi
Luca Alinari
António Aragão
Arias Missoni
Mirella Bentivoglio
Vicenç Bonàs
Pepe Bornoy
Jean François Bory
Antonio L. Bouza
Joan Brossa
R. Canais-Guilera
Mary Carmen de Celis
Henri Chopin
Hans Clavin
Liberto Cruz
Herman Damen
Vimala Devi
Reinhard Döhl
Samuel Feijóo
Ferro Ferro
Josep M. Figueres
Michael Gibbs
Antonio Gómez
Klaus Groh
Gabriel Guasch
Ana Hatherly
Werner Hebst
J. Iglésias del Marquet
Juanjo
Carmen Kuhn
Diego Lara
Alfonso López Gradolí
Lotta Continua
Pedro M. Lucía
Peter Mayer
E. M. de Melo e Castro
Santiago Mercado
Teresa Mialet
Eugenio Miccini
Ramon Miravitlles
Luciano Ori
Ignacio Pérez Piño
Michele Perfetti
Silvestre Pestana
Lamberto Pignotti
Francisco Pino
Fabio de Poli
Pere Queralt
Joan Rabascall
Katty la Rocca
Arsenio Ruiz
Joaquim Sala i Sanahuja
Saltés
Sarenco
Manuel de Seabra
Klaus Staek
A. Tàpies-Barba
Miroljub Todorovic
Karel Trinkewitz
José-Miguel Ullán
Timm Ulrichs
Jirí Valoch
Guillem Viladot
Paul de Vree
Jan Wojnar
e
Zabala
e quantos vivos mais e mais quantos mortos?
As gatas assimilam da lareira o lume, de vez em quando assaltam mansamente a cozinha, as horas frutificam jogos de sombras, os vizinhos são ruidosos, dá vontade de lhes bater na cabeça com um pau crivado de pregos, o remédio é pôr um disco a rodar com os auscultadores escoltando a cabeça, não pode ser.
Fotografias por toda a casa por toda a vida toda a Europa.
Halt! Hier!
Halt! Hier!
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