09/06/2007

Nenhum dos Rostos – II


Amanhã é dia de trabalho, mas decido ir ao cinema na mesma.
Entre as cinco e as sete da manhã, separamos a correspondência local. Às sete e uns minutos, vamos comer uma bucha ao tasco das bifanas junto à estação do caminho-de-ferro, voltamos, pegamos no saco de couro e vai cada um para sua zona a entregar. Faltam-me catorze anos para a reforma, de modo que vou ao cinema na mesma.
O filme passou. Era um homem sentado na cama de um quarto de hotel barato e americano. Era um assassino contratado. A luz do reclamo (HOTEL em letras invertidas e na vertical) vermelhejava pulsações no quarto. Isso impedia o homem de estar sempre às escuras. A música que o homem tinha posto a tocar no leitor de cassetes era Paradox, um tema dos anos 50 de Sonny Rollins. Isto sabe-se depois no correr da história. Sempre que ficava sozinho, o homem punha Sonny Rollins em Paradox. Ele era um assassino que estava à perna com um contrato cuja execução lhe saíra meio falhada. Um senador tinha-o mandado executar um rival político. O tiro que o ouvinte de Sonny Rollins lhe deu na cabeça só tinha posto a vítima em coma. No caso de sobreviver, era certo que daria com a língua nos dentes. A partir deste imbróglio, eram as considerações existenciais do pistoleiro. Estar a ficar velho, ser a primeira vez que não matava por causa de uma hesitação, a influência da ruiva espampanante e champanhejante que era amásia da vítima, a raiva virada contra o mandador, o apelo da contrição redentora, a hipótese de suicídio – e saudades de uma cabana de madeira na montanha que era o segredo do frustrado assassino.
Claro que aquela parte da cabana me ficou. Compreendi-o perfeitamente, apesar de ser apenas um carteiro, eu, e não um criminoso de aluguer como ele. Eram onze e dezassete da noite quando saí do cinema, onze e vinte e oito quando entrei em casa, onze e quarenta e três quando me deitei na cabana, onze e quarenta e três quando ela me olhou com aquela branda ironia furta-cores, um lírio de champanhe na mão.
Caramulo, tarde de 22 de Abril de 2007

3 comentários:

Paula Raposo disse...

Para mim está sublime!! Beijos.

Paula Raposo disse...

Reparei hoje que puseste a moderação de comentários neste teu espaço. Acho muito bem. Evitam-se abelhudos e ordinários a dizer o que não devem, mas que pensam que devem...aplaudo de pé a tua decisão.

Daniel Abrunheiro disse...

Paula Raposo: a tua atenção é-me muito gratificante, assim como a de outras pessoas que aqui vêm. Pus a moderação de comentários apenas por causa de estar a receber mensagens anónimas e vis que nada reflectiam sobre uma questão autoral que denunciei.
Não importa, porém. Obrigado por aqui vires, Paula.

Canzoada Assaltante