Soneto com Ossos e Espinhas
Também a infância é crepuscular.
De ante tudo o que pós viria a ser,
toda já era símile face do morrer.
Nenhuma luz a pôde mais fotografar.
Fritamos peixe, derivamos na avenida.
Em estações de gasolina pontuamos.
Cidade antiga, mais ou menos reclamos,
a una morte toca à mais diversa vida.
É tudo o mesmo. Livro de reclamações,
nem no turismo de invernos e verões.
Assamos frango, ambulamos na praceta.
Mais onerosos, os idosos, ultrajados,
firmam sonetos que queriam fossem fados.
Ossos e espinhas, tudo vai ter à valeta.
Mãe, Eu Moro Aqui
Descem as rolas ao povoado de raposas.
Bancos de pedra acamam os ralos lobos.
Publifolhetos verbam pomadas ossuárias.
Mais indigente do que o povo, o sacerdote.
Pilares da ponte são barras só de sabão.
O rio chora dum olho enxuto ao sol.
Se vem o vento, evapora criancinhas.
Fica a rua calçada de bonequinhas.
Escassa, a luz repassa roupa estendida.
No adro velho, cospe pus o sacristão.
O coração bombeia más sabedorias.
Do lar de idosos chega a cassete gravada.
A ortoépia foi bem há muito erradicada.
Desci aqui, que rola sou despovoada.
Sete Banalidades Verídicas
1
Tudo passa – o cigarro, o café, o copo ao lado.
Tudo passa – menos o passado.
2
Hei-de deixar de ser uma rola?
3
Baixaram as persianas,
não nos bate tanto o sol.
Matilhas de comedores de bolos,
tomadores de moscatel,
arranjadores de sardinhas assadas,
matinais conspiradores da harmonia.
Somos de espasmos sossegados.
De calças pretas, os filarmónicos.
Esta dor tão humana quão
um número.
O número da pastelaria.
4
Não quero mas convoco os meus santos escuros.
Apascento ao domingo cartucheiras de ovelhas.
A Norte, detiveram um padre falso:
olha, já começaram – não tarda,
chegam-me.
5
Irrefragável é a sexta hora da manhã,
quando renasces de mãe nenhuma.
Do sistema impensável, uma cinza de cortinas.
E do teu corpo, o espectáculo abandonado
a meio.
Salvando-te vem um tirocínio breve, futuro.
Futuro repetido em anedotas porcas,
insensatos versos, noções de geografia,
cálices mais gesto que cálices.
Toca-te a visão de homens em escarpas.
Mais voa a fixa fraga do que eles.
Soltas-te tu, não alcanças mar nem céu.
Antes do machado, socorre-te do registo
dos morning port drinkers, sua horária melancolia.
Não chegará alguém para resgate algum.
Mulheres de unhas pedestres sujas de verniz,
profetas brasileiros do amor-de-jézuze,
herdeiras inglesas de Westmoreland e alhures,
nem sequer um morto decente com que
possas engravatar-te ao domingo,
às seis e meia da manhã.
6
Não mais me afundei em corpo algum.
Não mais fundei corpo algum.
O meu corpo olho e dele digo:
outro nenhum.
7
A velha come na cozinha,
a velha chora na sala.
A velha chora na cozinha,
a velha sonha no pátio.
A velha sonha na cozinha,
a velha come o que chora.
Textos: Caramulo,
manhãs de 23 (sonetos)
e de 24 de Junho de 2007
manhãs de 23 (sonetos)
e de 24 de Junho de 2007
Fotografia: Mãe (Pedrulha,
tarde de 23 de Junho de 2007
1 comentário:
Gostei, Daniel. Beijos.
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