No vento e nos sonhos falam os mortos.
Calam os vivos em vida.
Isolados e comuns como respirações, vivemos.
Falamos no vento, adormecidos.
Tidos seremos todos em memória tóxica.
Um de nós morre, outro de nós ama.
Na praça de uma cidade, sentei-me num degrau.
O sol fez-me inexistir.
Crianças cegas comiam pães doces.
Não havia vento e nada me sonhava.
Choveu na aldeia quando surgias do lado branco.
O meu coração estava embrulhado num toldo amarelo.
Uma mulher oferecia damascos ao senhor padre.
O vento enrolou a chuva, tornou-a olhos.
A desalegria era uma flor com ombros.
As pessoas faziam menos sombra do que as palavras.
O rosto vermelho da amargura papoilava incenso.
Troquei a memória por um jornal mais antigo.
A rapariga que nasceu na Venezuela servia vinho.
Levaste o lado branco, a noite trouxe um pano preto.
Antes dos mortos todos e de alguns vivos, tive o mar.
Perdi-me depressa por não ser barco.
A vida pôs-se-me a ranger autocarros.
A fita das estradas amarfanhava toda a ida, toda a vida.
Sei que um ser pára em contramão, contra tudo.
Nada favorece um olhar sem fato.
Comecei a frequentar um café de avenida.
As amantes à hora brasileiravam sob candeeiros.
A minha cabeça rodava como um relógio lunar.
Na Lua, há vento e mortos sonhadores.
Os meus vivos, sou a quem pertenço em papel.
Adivinho-os em suas hortas calendárias, absortas, únicas.
Envelhecem até que se parecem com os filhos mortos.
Ouvem a montanha falar, fingem que não.
Assistem à destruição da colina, compram gaiolas.
À mesma hora, no minimercado, tomam café.
Falam de doenças e de auto-estradas, de crimes escritos.
Nunca lhes voltei a cara nem a casa.
Ouço-os falar, finjo que não.
Cego e peço um pão doce.
Caramulo, tarde de 7 de Junho de 2007
1 comentário:
Repito-me? Pois. Quando não percebo, não percebo. Quando penso que percebo, penso. Gosto de te ler.
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