01/06/2007

Rosário Breve - 2

Hoje, na página 56 de O Ribatejo
(em papel e em www.oribatejo.pt,
a segunda crónica de Rosário Breve)





Ao Espelho



Às vezes, raspando a barba, sinto-me tal qual o leitor deste semanário: como se houvera chegado à última página.
Todo o espelho é um lago cruel: por ser tão sóbrio e tão vertical. Sou, no entanto, um sobrevivente profissional – viver, é o que mais faço. Só ainda não morri por manifesto excesso de tempo. Suponho que isso seja bom.
Tudo isto deriva, como um barco à vela, do vento do corpo enrugando as águas do tal lago: a consciência. E também isso suponho que bom seja.
Não tenho todo o tempo do mundo. Tenho, porém, todo o mundo que o tempo me dá: a solteirona que amarga, manhãzinha cedo, o galão; o velho mediador de seguros que disfarça a indisfarçável calva colando, à força de laca de mulher, a rala farripa de orelha a orelha; a rapariga que chora rosas materiais quando se lembra que não é possível esquecer; e o poeta que entristece sem mãos nem dentes como os putos que aprendem a cair de bicicleta.
Minha Mãe, tornada naperon entre retratos viúvos, aguarda os próximos natais com a mesma invencível ansiedade das púberes que dão beijos de língua nas mútuas festinhas de aniversário. Vale-me que ela me não sabe cronista de última página.
Tirando isto, só se fossem o aquecimento global e o arrefecimento da globalização. Tais assuntos, no entanto, não me acodem enquanto a gilete faz à espuma o que a consciência faz ao corpo, não à beira mas dentro do lago da página 56.

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