04/06/2007

R. C.

Alguns corações respiram no escuro
como árvores na noite.
O meu também.
Algumas vidas são mares.
A minha não.

Aos meus mortos dou a minha gramática.
Ando dentro de bosques registando cristais.
Trago os cristais para os meus mortos.
A minha gramática respira no escuro deles.

Somos três ao balcão.
Sou o terceiro.
Os nossos olhares são oxidados.
Ouço mais do que digo.

Certa tarde, num urinol de café,
um cigano apontou-me à cabeça uma pistola.
Queria vender-ma:
– Estou a brincar contigo, pá, 30 contos, queres?

A minha cabeça anoitece desde manhã.
O meu corpo é uma árvore de sangue.
O meu corpo usa ossos de azulejo.
O meu corpo é um cavalo de madeira.

Os meus mortos tiveram mulheres de que foram.
Vivo-os na minha noite – e no meu licor.
Pertenço-lhes totalmente.
O meu cão amarelo integra-os.

Ainda não sou estrangeiro porque a Mãe vive.
As casas amarelecem como papéis.
Escrevo mortalmente com a vida ao lado.
As ruas reais são o matadouro dos sonhos.

As cidades, cheias de mortos que ficam,
não acodem aos vivos que passam.
Janelas delas lustram o sol.
Nos telhados laca a prata dos gatos.

Estou há muitos anos na floresta.
Mesmo estando ao balcão, sou no bosque.
Os mortos cirandam a dorso de veados.
Fadas malignas envenenam as águas.

Azulejos e cristais tinem dedos vivos.
Fitas de luz no teatro das noites (as minhas, as vossas).
Nós vivemos vinagre, sonhamos azeite.
No pátio, mulheres engordam homens de matança.

Ainda assim, um lago treme o céu frio.
Passam aviões, nós passamos, o poema fica:
respiratório cristal.



Caramulo, tarde de 4 de Junho de 2007

Canzoada Assaltante