06/06/2007

Dicções Radiofónicas

Dançarinos sem peso nem nome nem sombra
habitam o dentro dos meus olhos nocturnos.
Também nocturnas, minhas mãos dançam também.
Sou o triste nº 6752574/B: anulada alma núbil.

As estrelas ardem gelo à pele da água.
Flores de prata são elas, as estrelas.
Palavras de mulheres assim existem em homens.
Perdição e salvação, café sem açúcar, solidão.

Animais correm cegos as veias amantes.
Eles matam e renascem e morrem.
Périplos e lótus anilam o deserto pensativo.
Doenças e licores partilham prateleiras.

Um anel de terra no teu dedo de ouro.
A tua boca cheia do meu sal.
Açafrão amarelando o olhar retrospectivo.
Fotografias falsificadas na luz real dos móveis.

O nosso coração atacado de nós como um sapato.
A luz de Junho chamando crianças às manhãs.
A tristeza das mães mudada em filhos exilados.
Um barco de mármore parado no campo santo.

Topázio, opala, ametista, safira, rubi.
Atum, canário, ganso, mosca, mulher.
Palavra, segmento, anis, rosa, pai.
Somos feitos de relicários não verbais.

Já vos falei da caligrafia de lobos no caderno da neve.
Nunca vos disse da mulher amarela ao ar verde.
A minha música é vossa, não o meu silêncio.
Em comboios vazios me encho de passagem.

Homens quase nus vestem-se de fogo.
Crimes aleatórios organizam o tédio e o terror.
Bolos de morango e cerveja de gengibre além de vidros.
A avó adoece sem nos deixar o dinheiro.

Noivas cor-de-gesso ramificam a espúria laranjeira.
Noivos de alcatrão ventoinham mariposas.
Rubicundos padrinhos cerejam o repasto.
Crianças açucaradas de angelismo voejam.

Toda a montanha é sobre o natural.
Casas ovelham em seu manto de presépio.
A Lua concede-lhes o esquecimento.
A prata faz-se pedra, faz-se olhar.

Salteamos todos cardiológico contrabando.
As tripas nas mãos como colares pobres.
No estômago algum caldo, alguma angústia.
E o fado é menor como a vida.

As mães sabem que os filhos conduzem carros na noite.
Os pais sabem que os filhos os repetem.
Rosas e estrelas partilham néon.
O segredo é ouvir com a pele.

O gás do cosmos canta a lama da terra.
Viajantes sem alma pousam como flores.
São pombas coloridas, essas almas desagravadas.
São os meus versos, são a tua atenção.

De dia pontuamos o mapa da noite.
Sonhamos apeadeiros e barragens.
Acordamos na cama que se nos tornou sósia.
Somos vagarosos e morremos depressa.

Flores de pó ossificam redomas.
Tranças vivas de mortas avós em psychés.
Cantos beduínos e cervejarias às moscas.
Na biblioteca a única vida remanesce viva.

Em nossa casa, os livros esquecem a nossa amnésia.
Em nossa casa, os discos ignoram a nossa surdez.
Somos todos proprietários de coisa nenhuma.
À beira da estrada, os bares da noite abrem-nos a boca.

Alguns gestos escrevem alguns versos.
Algumas almas são ilegíveis.
Alguns nomes são mármore à nascença.
Só o mar não pode ser escrito.

A morte está na nossa agenda mas fora de páginas.
As tias velhas têm poupanças velhas como gatos.
Mas uma manhã no mar pode ser genésica.
Fora de impostos, fora de nações, dentro de cada um.

Somos relicários sem som nem imagem.
Aderimos à cal que o pó disfarça.
Sombras de tílias nos refrescam.
Outro dia nos será ontem. E de noite.



Caramulo, tarde de 5 de Junho de 2007

1 comentário:

Paula Raposo disse...

Todos os sentidos neste poema! Vi, cheirei, saboreei, apalpei e ouvi...

Canzoada Assaltante