Um rio anoitecido, a nossa vida, tantas vezes.
Algumas palavras apodrecem-nos a alma como canoas.
Derivamos na inconsequência de alguns ódios.
Somos gente que a vida empobrece tanto.
Estou sozinho numa sala sem móveis.
Dentro da cabeça rodam os gonzos da primeira velhice.
Escondo muitas vezes as mãos em papéis amarelos.
Um lápis segue-me, voraz comedor do meu coração.
Sonho muito com comboios vazios.
Acordo para escrevê-los, não consigo.
Adormeço dentro de um poço demasiado humano.
Sou mais um de nós num convosco de ninguéns.
Vê-me tu agora, dentro de ti, onde já morri.
Uma criança de boca azul insulta-me devagar.
No monte, pertenci às cheias de inverno.
Cachorrei anos entre cedros e oliveiras.
Depois, eles começaram a morrer.
Os cães, os rapazes, os limoeiros, o rio.
Refugiei-me dentro de uma biblioteca mortífera.
Escrevi palavras que se rasgavam sozinhas.
Tenho uma lâmpada na boca de peixe.
A sombra toca-me, muito genital.
Fecho os olhos na manhã.
O barqueiro procura-me e lê-me, tantas vezes.
Caramulo, entardenoitecer de 6 de Junho de 2007
5 comentários:
Eugénio de Andrade é para mim uma das minhas grandes raízes (por várias e uma razão). O Daniel com a sua escrita faz-me lembrar essas duas razões que habitam em mim. Espero que nunca (desculpe-me a apropriação)me decepcione.Sei que não é deus (nem eu acredito) mas que seja sempre humano no bom sentido de ser.
Bom dia, Daniel!
Do melhor de ti.Admirável.
Vindo de ti, Manel, é tão agradável. Obrigado. Obrigado também, Afectos.
isto realmente está uma maravilha...
Excelente!!! Mais uma vez...
Enviar um comentário