21/01/2007

Turismo - Quinta da Cruz (Castelões)



1. Quinta da Cruz

De manhã, cortámos para a Quinta da Cruz, em Castelões. Talvez venham a restaurar o edifício senhorial e as casas serviçais para turismo rural de habitação. Estiveram para ser aviários industriais. Há um eucalipto muito velho e muito vivo à esquerda. Disseram que, no tempo habitado da Quinta, aquela encosta era tudo laranjais acima. Não ficámos muito tempo. Mirámos brevemente o longo vale. Reentrámos no carro e fizemo-nos ao dia.





2. Senhor e Tempo - Alegria

O meu tempo nunca foi, nem será.
Nem meu, nem tempo.
Momento, sim. Isso sim. Quando,
como agora, ergo o olhar aos
laranjais que sobem a montanha,
rumo ao sumo céu, não serei já,
nem terei sido.
Isso sente-me alegria.


3. Senhor e Mulheres - Criação

A casa envernizada pelas mulheres:
ao ar, a casa, como uma nave:
no espaço sideral juncando lenha,
estrume de estrelas, destroços de fruta.
Todas criadas, as mulheres: sobretudo
a minha perante Deus, que o são também,
minhas, as outras da criadagem, mas sem
documento nem voto.



4. Senhor e Filhos - Geração


Quatro crianças dei à geração,
três herdeiras.
A bastarda, amada embora,
levada embora.





5. Os Animais – Memória

Os animais aqueciam a manhã gelada
com a mecânica sã da respiração.
Cheiravam a terra viva.
Comiam como quem se integra.
Tinham olhos cheios de uma memória
igual à das crianças.
Trabalhavam e morriam e nasciam.



6. A Cruz

Casas e terras nomeadas pela obra
crucifixadora. A humidade vegetalizou-a,
não a derrubou. Sinal
deixado por um deus
pedreiro e
ausente.



7. Refeições – Velas, Petróleo

Comemos animais e frutos.
Do mercado, subíamos a carroça
salgada de sal grosso, peixes,
açúcar. Eu caçava, também.
A louça era grossa e pintada
por crianças operárias.
O talher era de ferro vitalício
(encontrareis garfos nas ruínas interiores;
velas, não).




8. O Fogo e a Água – Os Senhores

Era maior, mais alta e mais ao alto
a quinta de meu Pai.
Deixou-me esta para que, nela,
me tornasse Pai
e o deixasse ir.
Fiz, como ele, arder a lareira.
Vi como ele o que chovia.
Vivi como ele.
Como ele, fui.


9. Neve – o Senhor de Botas

Microclima, aqui.
Microverão.
Ameixas, pêssegos: água.
Nevou alguma vez.
Quando nevou, os animais e as mulheres
confirmaram o natal perpétuo de suas
atenções.
Eu calcei as botas,
dei uma volta a ver
a claridade.


10. Casal Antecipado - Dia Sido

Outra manhã (que não esta noite de onde falo), um casal tomará este caminho. Passará a Cruz. Verá o que isto foi no que isto é. Ter-lhe-ão dito das laranjeiras que subiam. O eucalipto jovem terá outros adjectivos. Nem do casal novo será o Tempo, mas de quem souber. Depois, de quem tiver sido.

Fotos: Quinta da Cruz, Castelões, manhã de 20 de Janeiro de 2007

Textos: Giesta Dourada, Caramulo, noite de 20 de Janeiro de 2007

4 comentários:

Manuel da Mata disse...

O teu tempo há-de ser. A seu tempo. E isto não é benevolência d'amigo.Nem é tão-pouco mera premonição.

Manuel da Mata disse...

PS - Uma das actividades dos poetas é ler os da sua família e treslê-los,não é? Pois é!
É por isso que tenho um certo e salutar distanciamento, em relação à tua poesia, "mon ami".
Um abraço
Manuel

Daniel Abrunheiro disse...

A tua atenção é-me muito gratificante, Manel.

Anónimo disse...

Belo, muito belo. Tudo belo.

Canzoada Assaltante