Olha comigo as tuas mãos: vê,
são duas palavras escuras
escritas no linho. Lê
comigo as tuas duas escuras
mãos escritoras, riscadas,
cheirosas de caruma, tojo,
urze, giesta,
levadoras de cravos e hortênsias
ao lugar onde dorme o antigo
dono do segundo anel, o menos
gasto dos dois, o mais consumido,
afinal, dos dois.
Acontecidas no linho
como na terra o rosmaninho,
ambas.
Simultâneas desde sempre.
Estrelas humildes – e invencíveis.
Limpadoras de merda, cozinheiras,
agrícolas, íncolas, embaixadoras
da vontade do coração.
E quando uma delas subia
a espremer a aguadilha de uma teta,
expectante ao colo a cria de mamar esse soro
genesíaco, inicial, fundador, completo?
Nenhuma tocou jamais o sexo
de teu homem, cravadas no lençol
(no linho)
pelos pregos da Igreja.
Ainda assim, amaram.
Quase nunca receberam,
amestradas para dar
desconhecendo uma o que a outra.
Mãos portuguesas, uma fêmea,
macho a outra.
Mãos de ir ver, em paroquial
excursão, a amendoeira em flor,
o Bom Jesus, a azinheira miraculada
pela manha das sotainas.
Mãos de perfumar a água fervente
da negra panela com rica enxúndia
de galinha guilhotinada.
Escalavradoras da batata enterrada.
Amanhadoras das ominosas vísceras da sardinha
viva, vivas, atentas ao augúrio
de tais entranhas, tais destinos.
Nucleares.
Jamais as traiu um lápis:
na Casa do Povo, o índice direito
bebe da almofada de tinta
a assinatura genuína.
E no entanto são de pergaminho,
lenha e linho.
Em vão tenta a geada carburá-las:
de tão queimadas, são incombustíveis.
É vê-las à lareira: rosas incandescentes,
refractárias.
Irmãs entre si e da montanha filhas.
Bonsais.
Testamentárias e berçãs.
Quando meninas, esmifravam da romã os rubis.
Púberes, esfregavam-se na funchada flor do anis.
Viúvas, dão amêndoas de açúcar à saída sineira das noivas.
Benzem o próprio peito, sobre os ocultos
mamilos pretos traçando a cruz e o murmúrio.
Mãos mães,
ancestrais palimpsestos
de cuneiforme adágia ciência.
Na capela, aos sábados, esfregando de água fria
as lajes místicas.
Separadoras de gatos e andorinhas,
afogadas as ninhadas de recém-gatinhos
inda cegos.
Acústicas estrelas repercutoras.
Quem, se não elas, dobou e desdobrou o linho
para o tabernáculo da Ceia última?
Numa enxertia, fazem da laranjeira
um piano verde tocado de
teclas de ouro.
Numa matança de porco,
vinagrando o sangue borbulhoso da gorja,
acarinham a agonia do cerdo
cujos olhos assassinados lembram
os humanos olhos recebendo
telefonemas funéreos.
Mãos que a terra emprestou ao ar
por oitenta anos.
Aglutinam a luz que esclarece
este texto.
Acariciam, ao ígneo filamento do azeite,
as pagelas da Sãozinha e da Alexandrina
e do senhor Padre Cruz e do Doutor Sousa Martins.
Sugam do curral o suco do boi.
Bordam de esterco a florescência fátua.
E à magra lâmpada eléctrica procuram,
na adega morta do homem,
a garrafa de negro vinho para
celebrar outro neto.
Lê comigo as tuas mãos
neste texto:
texto-vela escrito para a cera
em que, missais, terçãs,
se juntarão, finais,
na capela bem esfregada,
lavada e de caruma, tojo
urze e giesta
perfumada.
Sobre o linho,
uma é o macho,
outra é hortênsia,
cravo,
fêmea.
Palavra e palavra.
Caramulo, tarde de 21 de Janeiro de 2007
5 comentários:
Sem palavras mais, Daniel! Há muito tempo que não lia como li hoje!
Vivo, blogariamente falando, de gratificações. És seguramente uma delas, Paula Raposo.
Gratificação no sentido não pejorativo, com certeza.
Que lindo, Daniel! É um belo hino à Mulher.Vou ler outra vez.
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