41 Ramos Na Vidraça
1
Está uma pessoa feminina deitada na cama. Só é possível ver o lado dela da cama. Não sabemos se há outro lado. Não sabemos se ela ocupa sozinha a cama. A luz varia entre o azul e a prata. A cabeça sangra uma hemorragia de cabelo. O rosto é bonito. A luz é lateral. São três horas da manhã.
2
Não sabemos se há outras pessoas em casa. Sabemos que ela dorme. Não sabemos se dorme só. Sabemos, só, que dorme. Agora, ela acorda de repente por causa dos ramos na vidraça.
3
Há uma árvore do exacto tamanho da casa junto à casa. A casa é grande. A árvore também é grande. Foram semeadas no mesmo dia – a árvore e a casa.
4
Às vezes, o depois vem primeiro do que o antes. Por isso vai e volta o Tempo. Por isso ficam árvores e casas. A diferença é o nascimento mortal. A rapariga nasceu naquela casa. E naquela casa dorme. Dorme – até que acorda com o raspar dos ramos na vidraça.
5
“Há quanto tempo nasceste?” – ouvimos nós uma voz dizendo. E outra voz – “E há quanto tempo morreste?” A rapariga acorda – abre os olhos no azul, abre os olhos na prata.
6
Devem ter soltado o cão, alguém deve ter soltado o cão. A voz dele picota a madrugada de roucas reticências. O vento faz “vim, vão, vêm…” Ela não vai. A rapariga acorda e fica.
7
São os ramos na vidraça. A casa é enorme. O vento é enorme também. Também a casa. A rapariga dormia. Agora, já não. Os ramos raspam. O cão existe. Os olhos do cão fosforescem como os olhos da rapariga. Os mundos cruzam-se como se o cio fosse a única razão.
8
Uma árvore é sempre solteira. Os arbustos são promíscuos, sim, mas as árvores não. Que diferença faria, ao mundo, se uma árvore recusasse a ordem natural do mundo?
9
A casa é grande, a vida não é grande. Há maneiras de falar. Nós sabemos que estar acordado é outra coisa. A rapariga acordou por causa dos ramos na vidraça. É outra coisa.
10
Lá fora, a manhã nasce como se fosse a primeira vez. Um calhau rola nos espaços. A rapariga aproveita para se levantar. Abre a janela. Não há nada a recear. Está ali a árvore, está ali o dia, está ali o cão. Olha, diz adeus ao cão.
1
Está uma pessoa feminina deitada na cama. Só é possível ver o lado dela da cama. Não sabemos se há outro lado. Não sabemos se ela ocupa sozinha a cama. A luz varia entre o azul e a prata. A cabeça sangra uma hemorragia de cabelo. O rosto é bonito. A luz é lateral. São três horas da manhã.
2
Não sabemos se há outras pessoas em casa. Sabemos que ela dorme. Não sabemos se dorme só. Sabemos, só, que dorme. Agora, ela acorda de repente por causa dos ramos na vidraça.
3
Há uma árvore do exacto tamanho da casa junto à casa. A casa é grande. A árvore também é grande. Foram semeadas no mesmo dia – a árvore e a casa.
4
Às vezes, o depois vem primeiro do que o antes. Por isso vai e volta o Tempo. Por isso ficam árvores e casas. A diferença é o nascimento mortal. A rapariga nasceu naquela casa. E naquela casa dorme. Dorme – até que acorda com o raspar dos ramos na vidraça.
5
“Há quanto tempo nasceste?” – ouvimos nós uma voz dizendo. E outra voz – “E há quanto tempo morreste?” A rapariga acorda – abre os olhos no azul, abre os olhos na prata.
6
Devem ter soltado o cão, alguém deve ter soltado o cão. A voz dele picota a madrugada de roucas reticências. O vento faz “vim, vão, vêm…” Ela não vai. A rapariga acorda e fica.
7
São os ramos na vidraça. A casa é enorme. O vento é enorme também. Também a casa. A rapariga dormia. Agora, já não. Os ramos raspam. O cão existe. Os olhos do cão fosforescem como os olhos da rapariga. Os mundos cruzam-se como se o cio fosse a única razão.
8
Uma árvore é sempre solteira. Os arbustos são promíscuos, sim, mas as árvores não. Que diferença faria, ao mundo, se uma árvore recusasse a ordem natural do mundo?
9
A casa é grande, a vida não é grande. Há maneiras de falar. Nós sabemos que estar acordado é outra coisa. A rapariga acordou por causa dos ramos na vidraça. É outra coisa.
10
Lá fora, a manhã nasce como se fosse a primeira vez. Um calhau rola nos espaços. A rapariga aproveita para se levantar. Abre a janela. Não há nada a recear. Está ali a árvore, está ali o dia, está ali o cão. Olha, diz adeus ao cão.
Caramulo, tarde de 15 de Dezembro de 2006
43 Isabel em Casquinha
1
Manuel, filho de Joaquim, foi acordado às três da manhã por telefonema.
– Estão a assaltar-te a ourivesaria.
– Como é que é?
– É: estão a assaltar-te a ourivesaria.
Manuel vestiu o fato por cima do pijama e disparou para a vila.
2
Tinham rebentado as correntes. No total, limparam pouco, talvez coisa de 400 contos, entre fios, relógios e anéis. Mas levaram a fotografia de Isabel, que Manuel tinha, em casquinha, ao lado da registadora.
3
Manuel ainda gosta de Isabel, que tinha dito que gostava dele e afinal não. Tinha sido por altura de o Papa ter levado um tiro. Manuel não tinha – ainda não tinha – a ourivesaria. Tinha só Isabel. Ou não tinha.
4
Isabel era – e ainda é – educadora de infância. Cheirava a frutos morenos. Tinha ancas cavalgáveis e era lustral como um golfinho. Manuel tinha vindo de França. Apostou numa ourivesaria.
5
Apostou numa ourivesaria pequenina como um dedo infantil. Sabia de relógios e consertava-os. Só não sabia consertar o tempo dos relógios, sobretudo o dos avariados. Então, Isabel entrou na ourivesaria de Manuel.
6
O pai, Joaquim, disse ao filho:
– Casa mas é com essa gaja. É tempo.
E Manuel casou com a gaja. O único problema consistia no facto simples de ela estar em viagem. De não querer ser apenas, até ao cair do pano, dona de ourivesaria.
7
Manuel queria ter filhos. Isabel não queria. Foram ambos fotografados num casamento alheio – o de João e Clara, que não entram nesta história. Manuel pediu ao fotógrafo uma montagem – Isabel, sozinha. E em casquinha.
8
Mandou um cabograma da Venezuela. Que lamentava. Que tinha pena. Que tinha havido um Sebastián. Que Sebastián tinha voltado. E que ela não voltava.
9
Manuel começou, desde então, a deitar-se cedo. Havia laranjeiras no pátio conjugal, de que nasciam solteiras as laranjas. Fazia frio no Inverno, o Verão era acalorado.
10
Em casquinha de prata, Isabel sorri para os amigos do alheio. Os ladrões, no entanto, vão tirar Isabel do centro quadrangular e vender, apenas, a casquinha. É o que sobra.
1
Manuel, filho de Joaquim, foi acordado às três da manhã por telefonema.
– Estão a assaltar-te a ourivesaria.
– Como é que é?
– É: estão a assaltar-te a ourivesaria.
Manuel vestiu o fato por cima do pijama e disparou para a vila.
2
Tinham rebentado as correntes. No total, limparam pouco, talvez coisa de 400 contos, entre fios, relógios e anéis. Mas levaram a fotografia de Isabel, que Manuel tinha, em casquinha, ao lado da registadora.
3
Manuel ainda gosta de Isabel, que tinha dito que gostava dele e afinal não. Tinha sido por altura de o Papa ter levado um tiro. Manuel não tinha – ainda não tinha – a ourivesaria. Tinha só Isabel. Ou não tinha.
4
Isabel era – e ainda é – educadora de infância. Cheirava a frutos morenos. Tinha ancas cavalgáveis e era lustral como um golfinho. Manuel tinha vindo de França. Apostou numa ourivesaria.
5
Apostou numa ourivesaria pequenina como um dedo infantil. Sabia de relógios e consertava-os. Só não sabia consertar o tempo dos relógios, sobretudo o dos avariados. Então, Isabel entrou na ourivesaria de Manuel.
6
O pai, Joaquim, disse ao filho:
– Casa mas é com essa gaja. É tempo.
E Manuel casou com a gaja. O único problema consistia no facto simples de ela estar em viagem. De não querer ser apenas, até ao cair do pano, dona de ourivesaria.
7
Manuel queria ter filhos. Isabel não queria. Foram ambos fotografados num casamento alheio – o de João e Clara, que não entram nesta história. Manuel pediu ao fotógrafo uma montagem – Isabel, sozinha. E em casquinha.
8
Mandou um cabograma da Venezuela. Que lamentava. Que tinha pena. Que tinha havido um Sebastián. Que Sebastián tinha voltado. E que ela não voltava.
9
Manuel começou, desde então, a deitar-se cedo. Havia laranjeiras no pátio conjugal, de que nasciam solteiras as laranjas. Fazia frio no Inverno, o Verão era acalorado.
10
Em casquinha de prata, Isabel sorri para os amigos do alheio. Os ladrões, no entanto, vão tirar Isabel do centro quadrangular e vender, apenas, a casquinha. É o que sobra.
Caramulo, noite de 21 de Dezembro de 2006
44 Quilómetro 187
1
Numa província do norte, havia à beira da hoje antiga estrada nacional uma casa de pasto a que recolhiam os camionistas exaustos e os viajantes de tudo e mais alguma coisa. No Inverno, quando as manhãs nascem anoitecidas como viúvas da luz, era bom obedecer ao chamamento da lareira. Fora das refeições, a vida sossegava junto ao lume hipnótico.
2
Essa casa de pasto já é história. Quando a estrada nacional foi desviada para outros destinos, o estabelecimento perdeu a clientela ao ritmo de uma hemorragia fulminante. O casal dono e a empregada desapareceram. Há quem diga que foram para o Brasil. Mas eu sei que não foram.
3
A empregada casou-se com um camionista de dimensões bovinas e pupilas idem. Já era ciência corrente que ela o recebia em noivado carnal no quartinho da sobreloja, nos tempos de humilde glória da estrada nacional. O gigante era um homem honesto. Comprou um anel a um viajante de ourives e deu-lho.
4
O casal de proprietários fechou a casa e perseguiu o rumo da nova estrada. Tinham economizado devagar e bem. O dinheiro deu para adquirir a concessão de um bar ao novo quilómetro 187. Mas a clientela regular dispersou-se sem remédio.
5
Sei que não foram para o Brasil porque os descobri ao quilómetro 187. Era eu o tal viajante de ourivesaria. Eu próprio estive para oferecer o anel à empregada. Mas ela não tinha olhos para mim. Só tinha olhos – e o resto – para o gigante.
6
Sinto que o coração me soluça como um pêssego vivo sempre que entro no bar do quilómetro 187. O estabelecimento é de fórmica, alumínio e vidro. É impessoal, rápido, mecanográfico. Não tem nada a ver com a antiga hospedaria. A própria vida não tem nada a ver com o futuro em que se tornou.
7
Todas as noites, sem excepção, me deito no Inverno. Mesmo que lá fora, algures na minha viagem interminável, arda um agosto de catástrofe incendiária – mesmo então, é no Inverno que me deito. Peço que ela me traga meio litro de café caseiro e duas sandes de queijo seco. Ela traz-me o que lhe peço, menos o que sem palavras lhe peço – um olhar. Um só.
8
Talvez o novo quilómetro 187 tenha sido marcado tão longe, que seja no Brasil. Talvez. Não quero saber. O novo bar não tem lareira. Nem sequer tenho a certeza de que os donos me reconheçam dos tempos antigos. O homem passa o dia a preencher boletins do totoloto. A mulher vigia da caixa os passos e os gestos da empregada nova.
9
Nunca desejei esta, a nova. Não tem nada da outra. E já tem anel, ainda por cima. Uma vez, assisti à largada de turno dela. Estava um carro lá fora com dizeres de electricista. O próprio electricista esperava a mulher fumando ao volante como um pirilampo tabágico. E o café do quilómetro 187 é de máquina, nunca fizeram do caseiro nem tal lhes passa pela cabeça.
10
A antiga estrada nacional acaba aqui. Parece uma serpente morta. Abandonam as estradas – e depois o alcatrão adere ao desamparo silvestre da terra. É uma visão estranha, uma estrada morta. Parece-se muito com o que quisemos da vida. Talvez eu seja tristonho de mais. O camionista grandalhão, esse estava sempre bem disposto. E só pensava na estrada como aquilo que tinha de fazer entre a manhã e o anoitecer ao pé dela, ao quilómetro zero.
1
Numa província do norte, havia à beira da hoje antiga estrada nacional uma casa de pasto a que recolhiam os camionistas exaustos e os viajantes de tudo e mais alguma coisa. No Inverno, quando as manhãs nascem anoitecidas como viúvas da luz, era bom obedecer ao chamamento da lareira. Fora das refeições, a vida sossegava junto ao lume hipnótico.
2
Essa casa de pasto já é história. Quando a estrada nacional foi desviada para outros destinos, o estabelecimento perdeu a clientela ao ritmo de uma hemorragia fulminante. O casal dono e a empregada desapareceram. Há quem diga que foram para o Brasil. Mas eu sei que não foram.
3
A empregada casou-se com um camionista de dimensões bovinas e pupilas idem. Já era ciência corrente que ela o recebia em noivado carnal no quartinho da sobreloja, nos tempos de humilde glória da estrada nacional. O gigante era um homem honesto. Comprou um anel a um viajante de ourives e deu-lho.
4
O casal de proprietários fechou a casa e perseguiu o rumo da nova estrada. Tinham economizado devagar e bem. O dinheiro deu para adquirir a concessão de um bar ao novo quilómetro 187. Mas a clientela regular dispersou-se sem remédio.
5
Sei que não foram para o Brasil porque os descobri ao quilómetro 187. Era eu o tal viajante de ourivesaria. Eu próprio estive para oferecer o anel à empregada. Mas ela não tinha olhos para mim. Só tinha olhos – e o resto – para o gigante.
6
Sinto que o coração me soluça como um pêssego vivo sempre que entro no bar do quilómetro 187. O estabelecimento é de fórmica, alumínio e vidro. É impessoal, rápido, mecanográfico. Não tem nada a ver com a antiga hospedaria. A própria vida não tem nada a ver com o futuro em que se tornou.
7
Todas as noites, sem excepção, me deito no Inverno. Mesmo que lá fora, algures na minha viagem interminável, arda um agosto de catástrofe incendiária – mesmo então, é no Inverno que me deito. Peço que ela me traga meio litro de café caseiro e duas sandes de queijo seco. Ela traz-me o que lhe peço, menos o que sem palavras lhe peço – um olhar. Um só.
8
Talvez o novo quilómetro 187 tenha sido marcado tão longe, que seja no Brasil. Talvez. Não quero saber. O novo bar não tem lareira. Nem sequer tenho a certeza de que os donos me reconheçam dos tempos antigos. O homem passa o dia a preencher boletins do totoloto. A mulher vigia da caixa os passos e os gestos da empregada nova.
9
Nunca desejei esta, a nova. Não tem nada da outra. E já tem anel, ainda por cima. Uma vez, assisti à largada de turno dela. Estava um carro lá fora com dizeres de electricista. O próprio electricista esperava a mulher fumando ao volante como um pirilampo tabágico. E o café do quilómetro 187 é de máquina, nunca fizeram do caseiro nem tal lhes passa pela cabeça.
10
A antiga estrada nacional acaba aqui. Parece uma serpente morta. Abandonam as estradas – e depois o alcatrão adere ao desamparo silvestre da terra. É uma visão estranha, uma estrada morta. Parece-se muito com o que quisemos da vida. Talvez eu seja tristonho de mais. O camionista grandalhão, esse estava sempre bem disposto. E só pensava na estrada como aquilo que tinha de fazer entre a manhã e o anoitecer ao pé dela, ao quilómetro zero.
Caramulo, noite de 1 de Janeiro de 2007
45 Índia, Teus Cabelos
1
Sei de um homem que esteve na Índia Portuguesa. Aquilo já era Índia antes de Portugal e voltou a ser Índia depois de Portugal. Mas naquela altura era Índia e chamavam-lhe Portugal. O homem que eu conheço, chama-se José Manuel Maria. Tem dois nomes de homem mais um que é nome da Mãe de Deus.
2
José Manuel Maria foi Levado para a Índia Portuguesa no Outono de 1959. Depois veio Nehru – e a portugalidade foi-se no vento como as palavras, as epopeias e as guarnições. O soldado José Manuel Maria esteve preso algum tempo, mas pouco. Trouxeram-no de volta.
3
José Manuel Maria chegou à Rocha do Conde d’Óbidos em Agosto de 1962. O ar da respiração custava mais do que uma memória transitiva. Foi a Vila Real de Trás-os-Montes acabar com o noivado, voltou a Lisboa e partiu para Moçambique. A guerra colonial aconteceu – mas já não era a guerra dele.
4
Solteiro, com dez tostões no bolso e um primo no banco de Lourenço Marques, José Manuel Maria montou um rés-do-chão de electrodomésticos. Num baile branco, conheceu uma rapariga branca, correcta e lavada como uma almofada de hotel. Falou com ela. Ela ouviu o que ele disse.
5
José Manuel Maria e Maria da Graça casaram-se em Moçambique sob a égide de um Cristo português. Ele ia muito aprumado, de suíças que desciam à boca, colarinhos que desciam ao casaco e calças explodias aos pés como notas de sino patriarcal.
6
Ela ia muito bonita. Parecia uma vara de cana tirada do canavial da puberdade. Os dedos dos pés dela eram juntos e apertados como pianinhos de caixa-de-música. As ancas nem sequer o eram. A cintura, beijada a lápis pelo Deus desenhador, tinha tiques de gazela.
7
José Manuel Maria e Maria da Graça continuaram casados até que, dois filhos depois, deixou de ser possível viver. A contabilidade dos electrodomésticos estava bem. O emprego dela também estava bem. O que foi, foi haver aquele mal no bairro. Era uma onda de febre. Ela sentiu-se, desceu à cama. Os primeiros cabelos brancos do homem são dessa mesma semana.
8
Quase quarenta anos depois, o antigo soldado da Índia Portuguesa explora sem capitalismos de maior uma loja de ferragens. É a seguir à Rodoviária, logo ali, onde os taxistas e os pássaros da noite descem de asas de terileno aos pés sanguíneos da iluminação pública. É outro tempo. É outra história.
9
Mais dois filhos fez, a outra senhora, o senhor José Manuel Maria. Presidiu de lado à criação dos quatro. Esteve atento às fortunas do vento, à bolsa das águas, ao correr das rádios, ao preço dos frigoríficos. Mas já não é a mesma coisa.
10
Em 1961, o Nehru esteve para mandar metralhar a insignificante colónia militar da Índia Portuguesa. Não mandou. Devolveu-os à Rocha do Conde d’Óbidos. Os soldados voltaram. Mas já não eram os mesmos. Tinham perdido a ciência da água fria. Só lhes restava, no futuro acabado, um frigorífico. Ou uma caixa de parafusos. Ou uma história tão portuguesa, que nem à Índia há-de voltar nunca mais.
1
Sei de um homem que esteve na Índia Portuguesa. Aquilo já era Índia antes de Portugal e voltou a ser Índia depois de Portugal. Mas naquela altura era Índia e chamavam-lhe Portugal. O homem que eu conheço, chama-se José Manuel Maria. Tem dois nomes de homem mais um que é nome da Mãe de Deus.
2
José Manuel Maria foi Levado para a Índia Portuguesa no Outono de 1959. Depois veio Nehru – e a portugalidade foi-se no vento como as palavras, as epopeias e as guarnições. O soldado José Manuel Maria esteve preso algum tempo, mas pouco. Trouxeram-no de volta.
3
José Manuel Maria chegou à Rocha do Conde d’Óbidos em Agosto de 1962. O ar da respiração custava mais do que uma memória transitiva. Foi a Vila Real de Trás-os-Montes acabar com o noivado, voltou a Lisboa e partiu para Moçambique. A guerra colonial aconteceu – mas já não era a guerra dele.
4
Solteiro, com dez tostões no bolso e um primo no banco de Lourenço Marques, José Manuel Maria montou um rés-do-chão de electrodomésticos. Num baile branco, conheceu uma rapariga branca, correcta e lavada como uma almofada de hotel. Falou com ela. Ela ouviu o que ele disse.
5
José Manuel Maria e Maria da Graça casaram-se em Moçambique sob a égide de um Cristo português. Ele ia muito aprumado, de suíças que desciam à boca, colarinhos que desciam ao casaco e calças explodias aos pés como notas de sino patriarcal.
6
Ela ia muito bonita. Parecia uma vara de cana tirada do canavial da puberdade. Os dedos dos pés dela eram juntos e apertados como pianinhos de caixa-de-música. As ancas nem sequer o eram. A cintura, beijada a lápis pelo Deus desenhador, tinha tiques de gazela.
7
José Manuel Maria e Maria da Graça continuaram casados até que, dois filhos depois, deixou de ser possível viver. A contabilidade dos electrodomésticos estava bem. O emprego dela também estava bem. O que foi, foi haver aquele mal no bairro. Era uma onda de febre. Ela sentiu-se, desceu à cama. Os primeiros cabelos brancos do homem são dessa mesma semana.
8
Quase quarenta anos depois, o antigo soldado da Índia Portuguesa explora sem capitalismos de maior uma loja de ferragens. É a seguir à Rodoviária, logo ali, onde os taxistas e os pássaros da noite descem de asas de terileno aos pés sanguíneos da iluminação pública. É outro tempo. É outra história.
9
Mais dois filhos fez, a outra senhora, o senhor José Manuel Maria. Presidiu de lado à criação dos quatro. Esteve atento às fortunas do vento, à bolsa das águas, ao correr das rádios, ao preço dos frigoríficos. Mas já não é a mesma coisa.
10
Em 1961, o Nehru esteve para mandar metralhar a insignificante colónia militar da Índia Portuguesa. Não mandou. Devolveu-os à Rocha do Conde d’Óbidos. Os soldados voltaram. Mas já não eram os mesmos. Tinham perdido a ciência da água fria. Só lhes restava, no futuro acabado, um frigorífico. Ou uma caixa de parafusos. Ou uma história tão portuguesa, que nem à Índia há-de voltar nunca mais.
Caramulo, noite de 2 de Janeiro de 2007
46 O Parque
1
A vila tem um parque onde os fantasmas colectivos passam as noites ao frio lunar que embalsama a terra. Digo que são colectivos porque são engendrados pelas pessoas que dormem. De modo que são como filmes projectados no azul e na prata da noite. Toda a prata, todas as noites.
2
Da varanda da minha casa, vejo o parque. De dia, vou à varanda. De noite, espreito por detrás das cortinas. Os fantasmas são as pessoas dos sonhos das pessoas. Também há animais, mas quase sempre com cara de gente. Por outro lado, alguns fantasmas-pessoas têm cara de bicho: o homem-cão aparece muitas vezes, por exemplo. E a mulher branca-cavalo branco também.
3
A mulher do electricista costuma sonhar com uma criança vestida de marinheiro. O fantasma infantil é dos mais terríveis: nota-se perfeitamente que teve de morrer – e continua morrendo – duas vezes. A vez que morreu e cada vez que é sonhado – involuntariamente embora – pela mãe.
4
É aos fantasmas que devo todas as minhas histórias. Uma vez por semana (geralmente ao domingo, quando a noite é mais triste), desço de casa ao parque. Sento-me no banco de pedra. Um deles acaba sempre por vir contar-me. Depois, outro. E depois outro. E outra. Alguns preferem cantar. Quando cantam, aponto os versos e depois publico os poemas como se foram meus.
5
A noiva-viúva sonha com o noivo-defunto. Uma e outra e outro e de novo e outra vez ouço a história do rapaz que foi buscar o fato na véspera do casamento e nunca voltou senão ao parque da minha vila. O viajante-ourives sonha com a empregada da casa de pasto que se casou com o camionista. A mãe de Maria Lúcia é das que cantam. José Manuel Maria também faz cantar o fantasma de Maria da Graça.
6
Nunca mais habitarei outra casa que não esta. Nenhum outro parque frequentarei com lápis e caderno. O frio balsâmico algodoa de gelo os meus passos e os passos deles. Junto ao espelho-de-água, eles juntam-se: eles os homens, eles os bichos, elas as mulheres, as cadelas, as cabras, as corujas, ela a Lua.
7
Se as pessoas não sonhassem – quão mais fácil seria tudo o que há e tudo, sobretudo, o que não precisaria haver. Se as pessoas só dormissem: contra o terror de amar, da certeza de perder, da nostalgia da maçã, do trópico do leite, da patagónia da solidão. Ou se as pessoas acordassem deveras – quão mais fácil – e desumano – tudo seria.
8
As pernas e os pés tornam perto o que é longe. Só as montanhas do mar resistem ainda à humanidade. No mar-oceano, os peixes são fantasmas de si mesmos. Em caso de Deus, serão filmes dEle. Caso contrário, está-nos encerrado o parque de coral, o ininterrupto espelho-de-água-do-mar.
9
Ontem à noite, por detrás das cortinas, verifiquei a estatística dos fantasmas do parque. Há muitos antigos emigrantes de Bidonville. Muitos soldados da guerra de 14-18, ainda. Há o meu tio Alberto, mas esse é só meu. Que junto dele ande um certo cão amarelo, enfim, é outra história.
10
Hoje à noite é sempre hoje e é sempre noite. Talvez as pessoas despertem. Léo Ferré queria que sim. Cristo também cria que sim. Eu não sei. O meu fantasma-tio-Alberto tem cara de cão amarelo chamado Léo. Está frio. A Lua vai cheia.
1
A vila tem um parque onde os fantasmas colectivos passam as noites ao frio lunar que embalsama a terra. Digo que são colectivos porque são engendrados pelas pessoas que dormem. De modo que são como filmes projectados no azul e na prata da noite. Toda a prata, todas as noites.
2
Da varanda da minha casa, vejo o parque. De dia, vou à varanda. De noite, espreito por detrás das cortinas. Os fantasmas são as pessoas dos sonhos das pessoas. Também há animais, mas quase sempre com cara de gente. Por outro lado, alguns fantasmas-pessoas têm cara de bicho: o homem-cão aparece muitas vezes, por exemplo. E a mulher branca-cavalo branco também.
3
A mulher do electricista costuma sonhar com uma criança vestida de marinheiro. O fantasma infantil é dos mais terríveis: nota-se perfeitamente que teve de morrer – e continua morrendo – duas vezes. A vez que morreu e cada vez que é sonhado – involuntariamente embora – pela mãe.
4
É aos fantasmas que devo todas as minhas histórias. Uma vez por semana (geralmente ao domingo, quando a noite é mais triste), desço de casa ao parque. Sento-me no banco de pedra. Um deles acaba sempre por vir contar-me. Depois, outro. E depois outro. E outra. Alguns preferem cantar. Quando cantam, aponto os versos e depois publico os poemas como se foram meus.
5
A noiva-viúva sonha com o noivo-defunto. Uma e outra e outro e de novo e outra vez ouço a história do rapaz que foi buscar o fato na véspera do casamento e nunca voltou senão ao parque da minha vila. O viajante-ourives sonha com a empregada da casa de pasto que se casou com o camionista. A mãe de Maria Lúcia é das que cantam. José Manuel Maria também faz cantar o fantasma de Maria da Graça.
6
Nunca mais habitarei outra casa que não esta. Nenhum outro parque frequentarei com lápis e caderno. O frio balsâmico algodoa de gelo os meus passos e os passos deles. Junto ao espelho-de-água, eles juntam-se: eles os homens, eles os bichos, elas as mulheres, as cadelas, as cabras, as corujas, ela a Lua.
7
Se as pessoas não sonhassem – quão mais fácil seria tudo o que há e tudo, sobretudo, o que não precisaria haver. Se as pessoas só dormissem: contra o terror de amar, da certeza de perder, da nostalgia da maçã, do trópico do leite, da patagónia da solidão. Ou se as pessoas acordassem deveras – quão mais fácil – e desumano – tudo seria.
8
As pernas e os pés tornam perto o que é longe. Só as montanhas do mar resistem ainda à humanidade. No mar-oceano, os peixes são fantasmas de si mesmos. Em caso de Deus, serão filmes dEle. Caso contrário, está-nos encerrado o parque de coral, o ininterrupto espelho-de-água-do-mar.
9
Ontem à noite, por detrás das cortinas, verifiquei a estatística dos fantasmas do parque. Há muitos antigos emigrantes de Bidonville. Muitos soldados da guerra de 14-18, ainda. Há o meu tio Alberto, mas esse é só meu. Que junto dele ande um certo cão amarelo, enfim, é outra história.
10
Hoje à noite é sempre hoje e é sempre noite. Talvez as pessoas despertem. Léo Ferré queria que sim. Cristo também cria que sim. Eu não sei. O meu fantasma-tio-Alberto tem cara de cão amarelo chamado Léo. Está frio. A Lua vai cheia.
Caramulo, noite de 3 de Janeiro de 2007
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