Noite, 1 do I
O dia é pouco. O Inverno é uma ininterrupta noite única. Muito pouca é também a gente que vive na terra. Acende a lareira e fica em casa, não sai à rua. Saio eu. Tenho sorte: a noite vai muito pura. Lavaram-na com água, depois passaram-lhe um pano frio e seco. O céu, mais alto que nunca, é uma ourivesaria de gelo. Vivalma. O vale é uma loucura sossegada. A serra de lá pulsa de veias públicas, candeeiras. Em primeiro plano, cheiro um cedro. O único café aberto só tem um cliente: alguém desirmanado. De cima, depois das bombas de gasolina, assisto à saída dele. O dono do café sai do balcão, senta-se ao pé do aquecedor a gás: único peixe no aquário rectangular. Subo outra rua. No Lar, é a hora dos fármacos. Em frente, o parque de merendas: ninguém desde o Verão. Paro um pouco. Respiro com a pele. O frio sabe bem na ponta do nariz. Emito vapor como uma palavra contínua. Nem animais há. Tudo é de uma sinceridade fotográfica. A rua é murada. Relva tratada antes do precipício. Vivendas alaranjadas de ouro. No imo das casas, mulheres fumegam sopa, crianças sonham acordadas. Em algumas casas, não há homens. Sinto esse (este) mundo exclusivo de mulheres e crianças. Eu também não hei: ando. Perfumado de frio, vivo metro a metro a noite única. Quando me sento para escrever, conheço que a boa sorte me tocou na noite – como se fora uma mulher.
Caramulo, noite de 1 de Janeiro de 2007
1 comentário:
Gostei de te ler agora. Bonito. Um beijo de um ano bom.
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