02/01/2007

Canção de Coimbra – V (Futuro e Final)

Matarás o teu porco e o teu gato.
Recorrerás a cidade original,
sabendo-a final e ao desbarato.
Mais hás-de ver do que sentirás:
5 essa altura sempre chega, embora
nunca baste.
Um dia terás feito.
Um dia estarás feito.
Os teus mortos privativos
10 (lugares de estacionamento do coração)
começarão,
finalmente,
a ouvir-te:
porque terás aperfeiçoado,
15 finalmente,
um idioma que sempre
desprezou o lápis.
A noite parecer-te-á nova como
um pano de loja
20 – ou um lápis,
desses que cheiram
a vermelho como
lacradas bocas de
raparigas-pássaros-casas.
25 Não terás,
futuramente,
finalmente,
livros que arrumar,
embora te não falte o
30 onde.
Primo Levi, Jorge Semprún.
Sandes de cavalas e pires de atum.
Cortázar e Borges.
Quijote foi a casa buscar seus alforjes.
35 Mercé Rodoreda, Vásquez Montalbán.
Passada a noite, passada a manhã.
Circularás – não, espiralarás
tua cosmogonia contribuinte
pela arcada do antigo Lampião,
40 onde Jornal de Notícias e cabelo à homem.
Nem o frio da noite será nostalgia:
há-de estar calor, qualquer dia.
Matarás o teu corpo e o teu fato.
Acabará sendo quase nada,
45 excepto versos,
isso de ter vivido.
O quê?
Uma borboleta de espuma do mar de Leça?
A Berlenga vista de lá do vidro de corvos?
50 O quê?
Madame Francinet?
Monsieur le Comissaire Maigret?
Descerás tu mesmo tua mesma
Alexandre Herculano,
55 um dia de outro ano.
Hás-de sorrir a não ter ido
para França, Auxerre ou Paris
– onde até respirar dizem que é
feliz.
60 Ou diz que não.
Não.
Disseste tu é que não.
O que fode, são as pequenas tretas.
O que lixa, são as pequenas tretas.
65 Agora (depois, antes), já não.
Bebeste?
Então, é igual ao litro.
Calma.
Uma tartaruga de brandy
70 esbruça-se, maripousada, no estômago.
Caraíbas, Jack London e vai devagar.
Stella Maris.
Hóquei em patins.
Em 1986, o vento zurzia como
75 um capataz.
As bicicletas já eram esqueletos de viagens.
Não no serão, aquando do final futuro
aqui, ainda, a lápis.
Não no serão.
80 Ressituarás Camilo Ardenas
no limbo, entre putas e leitores
do Correio da Manhã.
Tremerão sem teu susto
os papéis-de-papagaio-seda
85 no ar.
Já não poderás,
nesse tempo,
não vir para a cidade.
E viver aqui já não poderás.
90 Morrer aqui, sim,
poderás.
Mas antes.
Seu teu mesmo velocirraptor,
teu ófago qualquer coisa.
95 Calma. E alma.
E lama. Tivesses amado mais
ou menos.
O quê?
Uma ínsua de tangerineiras’
100 Uma chaminé furando uma cona-de-ar?
A alternativa já será.
Quando um homem se prepara
para aceitar – quando isso,
verifica que os habitantes desabitaram
105 a cidade, como
preferem dar de mamar aos bancos
com tetas-hipotecas
de andares suburbanos.
Sobreburbúriosanos.
110 Vem um homem aqui morrer
p’a isto.
Não quem foi.
Não quem será.
Só os versos contam:
115 5x250.
Isto está tudo bem.
Isto está tudo o mais correcto.
Passado é futuro devindo obsoleto.
Terão riscado os corvos negros
120 a branca disponibilidade das brancas
gaivotas perante a Nau
que à Berlenga preparava?
Terás tido tempo para renegar
essa forja fria, essa merda
125 toda?
Terás tido.
Terás sido feito.
Terás nunca amado,
precisado apenas, antes,
130 de uma língua sem boca
na cidade dos estudantes.
Hã? Antes?
Passará outra noite, como outra manhã.
Quantas, tu?
135 Na vinda dos inúmeros pássaros
(dos inúmeros portugueses),
um gato chamado
Tempo,
desconsertador-de-relógios-mor.
140 Senhor Peres, Dona Júlia: ondulam
as névoas. Enferrujam os gerânios
na terra inoxidável. As ruas
com os olhos em gaze.
Ligaduras amolecem de flava
145 pomada os olhos que desistem
de ver.
De ver, acima de tudo (Mafra
e arredores).
Pela Ericeira se escoou nossa sonsa
150 ensossa monarquia.
Cumprimentos à tia.
Mas o futuro.
Mas o final.
Voltemos a ambos.
155 Encerarás e encerrarás
a oficina: pêlos de marta e aguarrás.
Entre os dedos dos pés, as lâminas de barbear.
A ferida grená no centro da
mente preta-e-branca.
160 Tudo o que tiveres amado a nado,
a nada.
Tudo o que quiseste dizer e foi
ouvido ao contrário.
Tudo o que ouviste ao contrário.
165 De todo o teor de todo o anterior
verso terás (sido) feito
futuro.
Não mais e não menos.
Depois da Casa do Sal não é muito.
170 Seguirás.
Lerás vermelho-rapariga o semáforo fechado
à Auto-Industrial.
Lerás vermelho-industrial a rapariga fechada.
Só o futuro de finais centímetros, em frente,
175 te estará aberto.
Poderás ser esquecido,
moeda de troco do quanto
lembraste,
todos os anos, a vida toda.
180 Tudo te mente novidade.
Ao que redarguirás com a cínica
descrença (e má-fé, até) do costume:
ide-vos pôr num porco.
Serão, outra vez, as lentidões:
185 a da bruma encapsulada no
pico da serra;
a da espuma celulósica na
praia da Leirosa;
a da tralha de quebrados tijolos no
190 acesso à discoteca de Armando José Oliveira;
a do rasto de caruma no
rasto da primeira menina;
a do rasto de palavras no
rasto da segunda menina.
195 Serás lento nessas iniciais lentidões
que até ao fim, afinal, foram senhoras
de impor sua autoridade cardíaca,
genesíaca, ilíaca, ilídia e
lusíada.
200 Um incêndio de gesso: o rio de laranjas.
Os galos boiando.
A cal estomacal.
O lorde John e os senhores Spencer e Jones.
Lá em cima, a Noruega.
205 Mesmo ao lado, a casa de tabuinhas
do Alaska, na Bristol Bay de salmões,
traduzidos em mondeguês por
lampreias de açude.
Aqui não é Fevereiro, nem dia
210 11, nem ano
1983, mas
também aqui
nevou.
Corvos e gaivotas: neve e vulcão.
215 Retemperarás o velho amor:
palavra, falésia, pólvora, palavra.
Só te não deixarás, olha ali o novo
México que
te
220 quilha.
Era afinal isto.
Será isto afinal.
Juras de amor e de mora
juros.
225
Tanta tão pouca gente:
– para onde foi toda a gente.
Sai-se do 210, Antero de Quental,
e é,
afinal,
230 a subir:
a Alexandre Herculano,
não sei se
já me falaste disso.
Logo à noite há baile.
235 Não.
Agora já não se diz baile, mas disco – ou soneto:
Assomava de gaze a viuvez,
luz tinha um coração dominical.
Damião e Fernando, Pedro, Luís:

240 tudo é o mais português Portugal.
Papéis-de-papagaio tremerão
fendidos pela do sangue prestação.
Por estátuas a Camões declinarão
vivos nomes de mortos, coração.

245 Todo o tido teor anterior
contido está em verso o mais correcto:
futuro é passado obsoleto,
tangerineira, velocirraptor.
Teu gato e teu porco matarás.

250 Alexandre Herculano, fica em paz.




Caramulo, noite de 27 de Dezembro de 2006
e tarde de 2 de Janeiro de 2007

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Canzoada Assaltante