10/01/2007

Ao Senhor das Árvores – uma Sequência Mínima

1. Ao Senhor das Árvores

Gosto do teu rosto atravessado pela chuva.
E dos olhos cheios de água que olha.
Não quer dizer que ande sempre a pensar nisso.
Gosto de naufragar nas tuas costas.
Gosto de mãos que cheirem (é o caso)
a café e a sabão, extremos que cruzam
séculos e nádegas, filmes e falas.

Habito há muito tempo a pele do rato.
Quando me decidi por esta profissão,
tive de tratar mal, por reacção, duas ou
três miniaturas de gente.
Não a ti.
A nossa alegria tem corpo.
Empilhando lenha ou mensagens, estamos.

Andarei sozinho algumas vezes mais.
Ainda ontem, em Viseu, pela tarde burguesa.
Isso não tem mal.
O que tem mal, é a ínclita estupidez
das miniaturas. Delas, a egrégia menoridade.

Pode ser que eu tenha ainda de partir
dois ou três pares de cornos.
Partirei – e pronto.
Nada de outro mundo.

Nos entretantos das nossas vidas,
Peter Falk, Bruno Crémer e Jeremy Brett.
Séculos, café e sabão.

Comida quente e pão fresco.
Café fresco e lareira viva.
Celebração com o corpo lácteo.
Nascer na noite apertada de frio.
Beber o ar do parque – perguntar
ao senhor o nome das árvores.



2. Quinteto

O homem e a criança,
em pura aura de mútua confiança,
filmam de olhares simétricos
a rua em frente que adentram.

Pai e filha na antemão já
irreversível, projectada em
velocidade e crescimento.

A rua tem árvores.
Poucos carros a escolheram para dormir.
É manhã cedo.
O homem compõe o cachecol da filha.

Caminham, concretos e a cores
no mundo daltonizado dos novos bairros.
A criança sorri ao amigo invisível
que sempre a acompanha.
O homem vai cheio de cálculos
como um rim pedregoso.

Eu também entro na história.
Acabei de limpar os óculos e procuro
trabalho.
Encontro o meu trabalho no trio.

Os três são sugados pelo vórtice
da esquina da rua de Maio
com a de Santa Teresa.

Vão almoçar cedo numa taberna cheia
de empregados da Câmara.
Depois, vão ao Botânico.

Só depois integrarão a bicha
das visitas da Penitenciária,
onde, entre ferros e emanações de lixívia,
a menina narrará à mãe, em boa
caligrafia oral, o que tem feito
na escola e em casa.
Ela e o seu amigo invisível,
Ela e o seu pai compositor
de cachecóis.



3. Europa do Sul – uma Finitude

Alguns homens recolhem do natal os restos apodrecidos pela humidade inclemente da estação. Da padaria mana uma hipertermia de farinha. Duas mulheres de panos nas cabeças janelam conversa. Um professor de Moral Cristã fita as meninas do colégio (barriguinhas de perna e meias altas). A frente da estação ferroviária é ciclópica de relógio parado. Laranjas e cabeleiras de agrião pulsam em caixas de porta de rua. Reformados e alcoólicos lêem de borla os títulos dos jornais nos escaparates cobertos de plástico. Holandeses de sandálias e meias fotografam os santos de pedra-de-Ançã que sentinelam a Sé. Um advogado dado a aperitivos troca galhardetes verbais com um senhor anónimo. O camião-vidrão passa escaqueirando uma digestão de frascos. Uma pulsão de nádegas éclaira cordilheiras vaginéscias. Um polícia dá as costas à Caixa Geral. Um narcoléptico só tem pena de não sonhar.
E então, à irrupção insensata de uma lembrança reforçada pelo câmbio da luz na pedra-de-Ançã, a manhã é finita.



4. Filtro

Ela fuma como se a vida acabasse no filtro. Os olhos luzcam pérolas de ópio. Um casaco preto de brilhos surrados. Dormidora de pensão clínica vitalícia. Direitos legais entregues a um procurador de família. Os dois irmãos vêm no natal e antes de se fazerem ao Algarve em Agosto. Ela foi a menina do Pai. Enlouqueceram ambos, quase ao mesmo tempo. Ele, por morrer às mãos da mulher, no decurso de uma saída precária. Ela, por ter sobrevivido a ele.
Ela fuma como se a vida tivesse filtro.



Datas e lugares:
1: Viseu, tarde de 7, e Caramulo, noite de 8 de Janeiro de 2007
2, 3 e 4: Caramulo, manhã de 9 de Janeiro de 2007


1 comentário:

Maria Carvalho disse...

Sem palavras!! Gostei de ler.

Canzoada Assaltante