Outonal(x.) 95 e Ss.
Desço ainda algumas escadarias de Lisboa, no Outono.
Levo comigo pouco dinheiro, vou ver de borla os barcos.
Cidade fundeada em si mesma, dura flor
que a veia aberta do Tejo sangra em cor.
Estou muito dividido, nesse Outono.
Um amor espera-me em Coimbra, crédulo.
Saio de manhã muito cedo e trabalho.
Pela tardinha, ajudo à fabricação do crepúsculo.
Ando muito a pé, nesse Outono.
Venho dos Prazeres à Alameda,
de Campo de Ourique a Xabregas,
da Pontinha ao Relógio.
Quase chego a amar a violência económica da cidade.
Como sopa na cantina e ambulo pelos
tapetes outonais que assentam o campo
no betão desalmado e descoroçoado.
No Areeiro, há um maluco muito parecido
com o actor italiano Ciccio Ingrassia.
Tem a mania que é cobrador de autocarros.
Devasso a João XXI,
como esparguete na Avenida de Paris,
espreito as velhas ouriveseiras que se mostram de chá
na Mexicana.
É um Outono para sempre, o do meu coração partido,
em Lisboa, 1995. E seguintes.
Versos pró Camões
Vimos sem culpa formada
Vamos sem absolvição
Possa a nossa condição
Desculpar-se acabada
Morde o gato ladra o cão
Cheira a rosa a couve não
Que é de sua condição
Uma cheira a outra não
Vá meninos e meninas
Chupa-chupem aspirinas
Senhoras e meus senhores
Tenham bancários amores
E mil outros estertores
E um televisor a cores
E uma avó a cores também
Pretibranca basta a mãe
Do crime de ter nascido
Vão os dois a tribunal
O papá por ter lá ido
A mamã etc. e tal
Há tão pouco classicismo
O que mais há são gozões
Manhas de versilibrismo
Fazer versos pró Camões!
Gosto de ti Rosa Alice
Queres tu vir na m’t’rizada?
Oh não queres que chatice
Atão queres ‘ma lambada?
Esta vida são dois dias
Uma noite a vida é
De dia sou Malaquias
Mas de noite sou Zezé
De dia mula-de-carga
Amarga lá isso é
À noite Zezé descarga
Quando se torna Zezé
Rosa Alice cheir’ a couve
A couve de sopas frias
Muit’ odeia Malaquias
Resposta que dela ouve
E em torno a sociedade
N’ eterna luta p’lo pão
Nunca sente saciedade
Qu’ ele há muita ambição
Quem tem pão quer broa doce
Quem tem broa quer faisão
Farto de faisão fartou-se
Quem tem saudades do pão
Por exemplo o João
No bufete do hotel
Come faisão a granel
Mas diz que l’e sab’ a pão
Vimos sem culpa formada
Vamos sem gato nem cão
Qu’ a vida seja ladrada
Como a rosa perfumada
Que é da sua condição.
Se Ainda Gosto de Ti, Rosa Alice, e Quanto
(não parece, mas é um poema de amor)
Todo o frio já passado por todas as putas do mundo.
Todo o lixo de todas as feiras ao cabo do domingo.
Todos os sacos de café mandados ao mar para regulação dos preços.
Todos os subornos liquidados a polícias a liquidar.
Todas as freiras imoladas no altar de Deus Macho.
Tudo quanto for cremação de membros gangrenados.
Todos os tremoços tasquinhados pelas bocas cervejeiras.
Todas as bocas cervejadas em tasquinhas tremoceiras.
Todas as matas brasileiras.
Todos quantos vão ainda ao teatro (um, dois, três, quatro).
E toda a minha vida – da entrada à saída.
Caramulo, noite de 24 de Janeiro de 2007
7 comentários:
O "teu canil" é como um vício (bom), logo que ligo o computador pela manhã procuro novas rosnadelas (que delas, nada têm). Continua a fazer-nos felizes, que eu continuarei a "frequentar o teu palácio". Achas justo? Beijinhos
Ão, ão: quero dizer, sim sim.
Ão, ão, ão....ão.
Na verdade,gostei!
Sem verdade vos digo!
São bem bons os poemas do Daniel Abrunheiro.
Em verdade vos digo...são muito bons os poemas do Daniel Abrunheiro...palavras minhas...que valem o que valem!...
Eu vou gostando de te ler...
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