15/01/2007

Livro de Hóspedes





1.
Quando foi que se me tornou clara a evidência de a literatura importar mais do que a vida? Cedo foi. Sou hoje um desses homens sem importância que o instinto leva a preferir as roupas escuras e as noites brancas. E também isso não tem importância. Claro que me sobrevivem algumas bolsas de resistência, certas pregas de atenção prática que me levam a invejar a saúde das pessoas capazes de calcular, a partir da visão de um bosque, o valor daquela merda toda em dinheiro de madeira. Ou a jovenzinha capaz de casar-se com o promissor finalista de engenharia para lhe extorquir um apartamento suburbano, um filho-disney e um divórcio indolor. Oh sim! Só que, depois e antes, segue reverberando, só para mim, o fogo lento dos anos que o coração monástico de Rilke consumiu (ou em que se consumiu) para a concepção das Elegias de Duíno. E também isto não é importante – isto: que esse brando fogo arda só para mim, quando, na pastelaria moderna, fumo devagar perante a edição portuguesa das Elegias, que, sobre a mesa, e como a minha vida, passo a manhã sem abrir.



2.
Depois dos anos do mar, mais e mais me so(ço)bra a condição de bicho da terra. O corpo não me acompanha muito à vontade nesta diáspora. E eu compreendo-o, sobretudo no Inverno, quando, à lareira, sentimos ambos a conspiração da noite estalando nozes nos móveis da casa (qualquer casa).



3.
Quando comemos, não vemos as mãos. Assim é. E assim é que cegamos sempre para quem trabalha, ávidos do seu produto.



4.
Verificar a universalidade dos detalhes – essa é a condição da poesia. E não outra.



5.
Crianças-garnizés esganiçam-se por gomas de boião, desassossegando os tomadores de café divorciados em fim-de-semana-não-de-ver-os-próprios-filhos.




6.
No dia 26 de Agosto de 1976, o Zé Lima parou o carro em plena planície alentejana para festejarmos com laranjada o milésimo quilómetro do carro novo. A Xelinha, que por esse então não tinha diabetes, também bebeu. Era de tarde. A claridade era tanta, que as unhas das mãos sabiam a torrão-de-alicante. Nesse dia, fui muito feliz. O meu corpo não apenas me acompanhava à vontade, como me precedia. Eu tinha os dentes todos. Não fumava devagar nem depressa. Gostava de roupas amarelas, vermelhas, azuis.



7.
E quando, como às mãos do comedor, não vês que o futuro já está em ruínas (qualquer futuro)?



8.
Na rua da Sota, existia antigamente uma pensão tão decrépita, que até os ratos constavam do livro de hóspedes. Ainda existe (a pensão, o livro). Fiz aí amor uma vez com não sei quem. Sei que tivemos de despachar o serviço por causa de a humidade ser tão intensa, que aquilo foi mais nadar que outra coisa. Também recordo que, no fim, tivemos de resgatar as roupas (amarelas, vermelhas, azuis) de um poço com a ajuda do arame que fechava a porta. Separámo-nos para sempre na rua que leva à Império e ao Angola. Já então, eu gostava que o nome das pastelarias e dos cafés fossem os últimos bastiões da nostalgia colonial. Comi um folhado de carne na Império e bebi cerveja preta no Angola. Depois, fui conferir o rio junto à velha Estação Nova. Ao longo da avenida ribeirinha, ciganos e pederastas apregoavam rifas para o sorteio do Juízo Final. Tenho voltado sozinho ao mesmo quarto da pensão da rua da Sota. Mas a humidade, ao contrário dos ratos e do arame da porta, já não é a mesma.


Caramulo, tarde de 14 de Janeiro de 2007

3 comentários:

Anónimo disse...

E do Moçambique que te ficou, Cão? Bebia lá cervejas e jogava snooker à paulada, era quase sempre Agosto que me restava porque os outros meses tinham partido. Nunca gostei daquilo. Entrava e ficava porque sabia que a Praça e o cagaçal dos pássaros nas árvores ficavam à minha espera, lá fora.

Daniel Abrunheiro disse...

Exactamente o mesmo comigo, Mangas.

Maria Carvalho disse...

Fabuloso! Tudo o que acabei de ler.

Canzoada Assaltante